domingo, 30 de agosto de 2009

tempos


estático na parede
o relógio
já não batem os pêndulos
há tempos sem som
o cuco morreu

os ponteiros como flechas
apontam para o nada
congelados algarismos
desprovidos de sentido

mas há horas...

as horas,
essas caminham lá fora
no dia nublado
escorrido de garoa

as horas
vão passando
inominadas e secretas

as horas, hoje,
sentem frio
`

terça-feira, 25 de agosto de 2009

natureza morta


na fruteira, bananas
lindas e plácidas
exibidas de seu amadurecimento
amarelo
fazem contraste ibérico
com o vermelho rubro
das maçãs sem pecado

na toalha branca
caprichoso richilieu engana a vista
e já não se sabe onde termina a sombra
e onde começa o bordado

a luz de fim de tarde
põe tons de rosa e alaranjado
na cozinha limpa
esvaziada
àquela hora apenas habitada
pelo cheiro do café
recém coado

(na sala, a mulher chora
mas sua dor e seu soluço
não caberiam no quadro)
'
Imagem: Natureza Morta com Maçãs e Laranjas, Paul Cézanne

sábado, 22 de agosto de 2009

parca vida

é que nunca se sabe quando e como ela virá

é que, se pudéssemos, bem que escolheríamos
o por do sol, as ondas do mar
o abraço infinito do filho, do amor, do amigo

é que nunca se pensa que ela está aí, sempre à porta
surpresa prevista, vago aceno, ameaça constante
como, onde, que motivo, pouco importa
ela virá sem perguntas, fará absoluto o instante

e tudo o que nos é dado pedir, é que venha calma
que seja serena
sono contínuo, talvez com sonhos
sem dor, sem medo, sem despedida

doce Átropos
que traga um sorriso
enquanto nos corta o fio da vida

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terça-feira, 18 de agosto de 2009

muda



o branco do papel é o dos olhos
cravado em mim como dardos
à espera e à espreita das palavras
que deveriam ter se soltado
da ponta dos dedos ou da mente
ou do coração ou do estômago
palavras com cheiro de corpo
que oferecessem uma rima
uma idéia com sentido ou beleza
a desfazer a brancura
da folha virgem e nua

mas este corpo recluso
recusa-se hoje a falar
fecha-se
e tudo que encontro são rastros
sons amorfos, letras mudas
que não se conectam a nada

minha poesia hoje é calada

'

imagem: Blue Nude, Pablo Picasso

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

(sem) tido

dentro dos livros dentro dos olhos no fundo das bocas no canto dos corpos
tanto procurava e procurava
e no meio das palavras perdidas aqui e ali encontrava uma sobra um pedacinho
um quase nada esquecido e desses restos miudinhos ia compondo um som difuso melodia dissonante tecida em travesseiros perdida entre pranto e cobertores
em quiálteras confusos amontoados acordes uns pianíssimos outros fortes
disparatados stravinkys no chão do quarto e da vida espalhados como tinta
como borrões insones amorfos sem sentido
tempo indo escoando escapa
do cenário caótico à ópera bufa tragicomédia absurda
sem script sem diálogos sem anticlímax ou trilha sonora
atores nus espelhados imperfeitos riem-se uns dos outros-si-mesmos
costas tortas barrigas pelos gorduras flácidas e peitos
retalhos de matéria viva desgastada descomposta decomposta
derretendo-se aos olhares fundindo-se em lava viva
buscando loucamente uma saída
pelos vãos estreitos de silêncio entre as palavras
pelos becos hesitantes e suspiros boquiabertos
entre um a e a outra letra na infinitesimal quietude
escondida entre dois pontos qualquer coisa qualquer data
qualquer ilusão de motivo que justifique comédia ou farsa
que permita ao fim do drama uma coda alinhavada

tudo tanto tanto muito mais e mais e tanto ainda...

tudo isso para

nada

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segunda-feira, 10 de agosto de 2009

uns

um é um
e não há dois
hoje é só
não é depois
um mais um
é lado a lado
presente é pó
sobre o passado
um somente
singular mente
outro é sempre
um diferente

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terça-feira, 4 de agosto de 2009

quero quero


quero o mar
e quero mais
perdida em vagas
avistar
vaga terra
ou profundezas

quero o ar
quero voar
ver lá de cima
verde mundo
em miudezas

quero, quero
e ao meu lado
quero-quero
quer também
amar amado
que incerteza!

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fonte da imagem: http://www.photoindustrial.com/images/Quero-Quero_bird_flying.jpg

domingo, 2 de agosto de 2009

aula de música

e um e dois e três e quatro
de novo
e um e dois e três
no ritmo
e um e dois e três e quatro
metrônomo
e um e dois e três
stacatto
e volta e sobe e desce
repete
e passa e conta e liga
piano
e um e dois e três e quatro
trinado
e um e dois e três
da capo
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uma versão vistual deste texto está publicada no Espaço de Escrita http://www.espacodeescrita.web2logy.com/