domingo, 23 de janeiro de 2011

TEOREMA

ah, como queríamos que o destino seguisse a geometria das conchas:

crescimento previsível

gnomônica regularidade


que não houvesse as mãos do tempo

desenhando a própria linha tracejada e descontínua

lançando-nos, polígonos inusitados,

nas superfícies moebianas das noites e dos dias


criança travessa diante da tela do universo,

o tempo carrega

ora nas tintas, ora nos traços

divertido pela vida assimétrica

pelo quase-encontro assintótico

pela voz enlouquecida

que tenta escapar de seu compasso


devorador, come-nos

goza de nosso gosto amargo

do estalar de nosso esqueleto prensado

entre as circunvoluções do desejo

e a trama helicoidal do passado


tempo-deus todo poderoso

recusa os limites euclidianos

diante de seu grito hiperbólico

abrem-se os fractais da realidade:

no início era o ponto

depois, a infinita possibilidade


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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

VÁCUO


para Nilza


foi para poder dormir
que inventei um deus que sonhava :

num tempo reverso

estávamos juntas

sentadas à mesa

contando entre risos

cotidianas migalhas



foi para poder acordar
que sonhei com um deus que criava:

à imagem de minha vontade

estavas comigo
invisível, intocável

presença incorpórea

sussurro no ouvido



foi para seguir em frente

que criei esse deus que inventava:

do aconchego de antigas lembranças

o cheiro doce

café com bolinhos

abriu o portal inefável

das dimensões desencontradas



foi, assim, para estreitar o abismo

que deus fingiu crer que era eu que sonhava:

à semelhança da tua saudade

estavas com tua menina

embaladas por vago piano

o olhar cúmplice

e as mãos dadas


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sábado, 8 de janeiro de 2011

CRASH!


era límpido cristal o espelho das certezas

aos olhares famintos de garantias
dava sempre a mesma resposta:
a pergunta, como eco, repetia

reinou por séculos
absoluto no castelo das palavras

foi por inesperado soluço
que de um só golpe caíram
castelo, palavras e espelho

as línguas ficaram suspensas entre silêncio e grunhidos

nesse instante recortado do tempo
dos estilhaços de vidro partido
vinham reflexos de entrelinhas

os olhos marejados de angústia e reticências

do quebra-cabeças desfeito
a substância pura da vida
escorreu qual fluida transparência

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imagem: magic mirror - m.c.escher

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

(ANONIM)ATOS

eles são muitos
são tantos
que excedem
transbordam, invadem
em seus passos sem rumo
se chocam
se batem
insones zumbis

eles são velhos
cansados
desfeitos
são tortos, são vesgos
são cegos e presos
trancados em si

eles são pobres
e despossuídos
cadáveres vivos
bonecos
autômatos
sem luz e sem cor

eles são quase todos
povoam o mundo
e sua língua morta
só grita silêncio
e gemidos de dor

e nós que teimamos
em seguir coloridos
em querer ser
mais vivos
o que será de nós?

e nós que insistimos
nas pontes
nos risos
quais serão os ouvidos
a escutar nossa voz?

(numa noite quente de verão
hei de abrir todas as janelas
- quem virá comigo?
tu vens? vens, amigo? -
sobre o fundo de escuridão
como distinguir
estrelas, pirilampos e olhos
imersos em tanto brilho?)

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