Freud era um homem culto, mas pouco afeito a citações. Talvez por isso, chame tanto a atenção o fato de que ele tenha usado uma epígrafe na primeira página da primeira edição de sua Interpretação dos Sonhos, em 1900. A frase, retirada do poema Eneida, de Virgílio, poderia ser livremente traduzida assim: “Se não puder mover as forças do céu, moverei as do inferno”. Com sua inteligência e humor sutil, Freud pôs lenha da fogueira das discussões sobre o funcionamento da mente humana, discussões que, diga-se de passagem, sobreviveram a ele e à mudança de século. Para simplificar, a idéia fundamental que subjaz a tudo o que ele escreveu está metaforizada nessa epígrafe, escolhida para abrir a obra que funda o edifício da psicanálise. O que diz ela? Algo como: há algo no cerne do humano que resiste a quaisquer tentativas de sufocar, prender, represar, domesticar, uniformizar, pasteurizar, adaptar... Há algo que sempre escapa às rédeas. Há algo que pulsa, que movimenta, e que empurra o sujeito vida afora, numa busca sempre desafiadora do bom senso e dos bons costumes.
Nesta semana, o mundo conheceu Susan Boyle. Ela tem 47 anos. Passou todo esse tempo incógnita, perdida dos olhares públicos num vilarejo qualquer da Escócia. Ela é feia, gorda, não parece muito brilhante do ponto de vista intelectual. Ofereceu-se ao pouco caso da platéia, vestida com um modelo saído do baú dos anos 60. Confessou, despudorada, às câmeras deste nosso mundo hiper-sexualizado, que nunca namorou, nunca foi beijada. Susan Boyle é a contramão do fashion. E, no entanto, ela canta. Canta bem, canta forte, afinada. E não há de ter sido por acaso que escolheu uma canção que repete “I’ve dreamed a dream...” para jogar na cara dos jurados estupefatos do Britain's Got Talent.
O que virá a seguir? Provavelmente ela gravará um CD. Na capa, aparecerá repaginada. Aliás, um jornal de grande circulação em São Paulo, já usou essa expressão para ilustrar fotos de Susan mais bem arrumadinha. O multiprocessador de pessoas, que é a dita sociedade de consumo, vai moer a Susan, provavelmente. E não faltará quem teça elogios rasgados à sua “melhora”, ou ao seu “progresso”, ou seja lá que palavra bonita se quiser usar usar para dizer que ela se tornou comum. Uma pena. Não se trata de pessimismo. Esse fenômeno já ocorreu antes, muitas vezes. O rock’n roll, o movimento hippie, os punks, só para citar os exemplos mais recentes, estão aí para ilustrar esse percurso.
Mas o que não se pode perder de vista é o momento. O instante de sua aparição e os efeitos dela. Quando o desejo irrompe e sobrepuja as forças da cultura, há sempre surpresa. Uma espécie de perplexidade misturada com inveja e horror. Quem não gostaria de ter a coragem de Susan Boyle? A platéia aplaudiu seu canto, sim, com certeza. Mas aposto que aplaudiu também sua coragem. Aplaudiu por reconhecer naquela mulher velha, gorda e feia, uma coragem que não tiveram. Por que manter-se fiel a si próprio, ao sonho que se acalenta, o desejo mais íntimo, é talvez a tarefa mais difícil para o homem aculturado. Quem nunca sonhou em gritar algo ao mundo, algo inesperado, subversivo ou imoral? Quem? Susan Boyle somos todos nós, criaturas feitas de carne, osso e desejos. Aproveitemos, então, esses minutos de satisfação... porque eles duram pouco, mas nem por isso valem menos a pena!
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para assistir: http://www.youtube.com/watch?v=xRbYtxHayXo
6 comentários:
Freud pode ter usado Vergílio para epígrafe, mas a epígrafe para seu texto poderia ser mais antiga: Aristóteles, A Arte Poética.
De modo igualmente "ad hoc" eu cito descontextualizado, à minha conveniência, midrashicamente:
Por que vamos ao teatro? Para nos identificarmos com o bem (e sentirmos prazer com nossa tão especial existência) e para repudiarmos publicamente o mal (e nos sentirmos tão aliviados do sofrimento do pecado original, da animalidade, do destino símio que carregamos para pejo de Deus).
Ora, os programas de calouros são a forma moderna mais escrachada do teatro aristotélico. Desde sempre nos assimilamos aos bons e nos distinguimos do mal. Judaísmo e cristianismo só vivem disso.
Susan Boyle é intelectualmente bem mais sofisticada do que pareceu a você. Ela explorou a arte dramática, como todos nós, que autoramos, dirigimos e gerenciamos nossas personagens. Não foi acidental, foi cínico.
Uma segunda possibilidade seria explorar o fenômeno sociológica ou antropologicamente, inspirado em Marx. Somos todos culturalmente antropofágicos, absorvemos toda marginalidade e a digerimos até que se transforme naquilo em que tudo digerido se transforma.
Gostaria de ler um novo texto seu sobre esse "fenômeno" em, digamos, dez anos.
ok... daqui a dez anos escreverei algo!agora, marx e freud estão vendo o mesmo elefante, por diferentes ângulos, apenas... minha praia não é a sociedade, é o sujeito, por isso prefiro o segundo... sem deméritos ao primeiro!
Muito bom, Márcia. Adorei! Bons argumentos! :)
Ela é genuína, mas não acredito no espanto do júri. Em comunicação, todo o improviso é meticulosamente ensaiado.
Muito bom e apropriado o seu artigo, à baila dos fatos...
No eter e anais do Universo, ficará o "momentum" da memória da descoberta e criação, do "hic et nunc"...
O resto que advir, será mera "pompa e circusntância", com efeitos sempre relativos...
(Boyle, como tantos outros que "aconteceram" e virão, é diamante bruto que apesar de deslapidado e opaco, ofusca pela ansiedade de sua possivel grandeza e quilate, "ex tunc"...)
bem legal sua crônica comparativa !
um beijo
Joe
Essa Susan é muito da simpática. Tão espontânea...
E mesmo que o conspirador Joaquim esteja correto, o fenômeno da rotulação ainda existe.
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