sexta-feira, 31 de julho de 2009

soneto

quase longe é já tão perto,
que estende a mão e toca
o outro rosto, a pele, a boca
a alma pronta, o peito aberto

sem saber se fica ou corre,
a liberdade do gesto estanca
a vida pára, o coração tranca
o amor estático na etérea torre

entre os corpos, oceanos
almas juntas, no entanto,
fazem muito, fazem tanto

que o tempo retrocede em anos
e o instante do toque recupera
- ressuscitado, o amor espera

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terça-feira, 28 de julho de 2009

[seria bom saber como arrumar a vida...]

seria bom saber como arrumar a vida
cada coisa em seu lugar
as pessoas sempre bem
a saúde sempre lá

arrumar o armário, a gaveta
jogar fora inúteis papéis
seria bom organizar as lembranças
em caixas coloridas
forradinhas de veludo

arquivar em ordem alfabética
os amores recíprocos
os corpos em forma
as idéias, os sonhos, tudo

ficariam, talvez, melhor postos
de acordo com a cronologia
versos com rimas, sonetos
musica, quem sabe, acordes perfeitos

... mas a realidade vem e cai como chumbo
chuva fria na fogueira dos desejos...

há dor que não tem lugar, não cabe
no meio do caos só a morte aponta
como certeza dura, limite

afronta

é muda
isenta de palavras
impossível choro na alma despida de lágrimas

tudo é quieto e escuro
na respeitosa expectativa:
gente viva


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sexta-feira, 24 de julho de 2009

amor, ainda

amor palavra
sem casca e sem roupa
de letras puxadas
uma a uma em bem-me-quer
revela em sépia entrelaçados
corpos de homem e mulher
sonhos e segredos coagulados
no pacto sangrante das línguas
que no instante do toque
ouve ainda a voz rouca e distante
da fala louca e muda dos amantes

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quarta-feira, 22 de julho de 2009

metaescrita




A escrita é um vício. Como fazer a realidade se encaixar na embalagem imperfeita das palavras?
Sempre falta um pouco. Ou sobra.
Mas, como num jogo, o desafio captura. É um videogame pessoal, a escrita.
Quando parece que a temos, a idéia escapa, ou cresce, ou se transforma. E, já outra, nos provoca a começar tudo de novo. Este game nunca é over.
Trocam-se letras, testam-se outras, refazem-se parágrafos e versos. E já não sabemos quem é Aquiles e quem, a tartaruga, nesse esconde-esconde léxico e estilístico que reinventamos a cada dia.
A escrita é um vício porque realidade e palavras são peças de diferentes puzzles. Não encaixam.
Por um breve tempo, iludem.
O sentimento posto no papel parece de verdade. Mas logo já não é. E, então, quer-se mais.
Às vezes, escreve-se com rapidez, na expectativa de que as palavras alcancem a substância.
Mas ela, que afinal é em nós uma criança, ri-se de tamanha arrogância. Corre, foge, enfia-se em algum canto insuspeito da alma e espera. São os dias de silêncio.
Mas, então, num momento qualquer, inesperado, põe as asinhas de fora, sedutora. E, para tentar segurá-la, corremos à caneta, ou ao lápis, ou às teclas. E a brincadeira recomeça.
Enquanto verdade e palavra se divertem dentro de nós, somos percorridos por esse arrepio, esse prazer.
A escrita toca o corpo. Nos faz jovens. É antidepressivo.
A escrita é movimento, é batimento, é pulsar.
A escrita é o jeito que temos de tornar um pouco da vida, infinita.




hoje o PoeticaMente faz aniversário... agradeço a todos que, neste um ano, gastaram uns minutinhos do seu tempo para ver minhas palavras... espero ainda trazer muitas!
um abraço
marcia szajnbok
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segunda-feira, 20 de julho de 2009

che vuoi?

há tanto nesse mundo por querer...

um pouco mais
ou menos quem sabe
dessa diversa qualidade
que há de seres ao dispor
tanta gente, tanta pele
modelagens tão distintas
raros traços, novas tintas
cores para todos os gostos
mas é preciso estar a postos
para deixar a alma livre
sonhadora, enfim liberta
a encontrar a porta aberta
e seguir em frente, sem medo...

quem é que tem coragem
de se revelar tal segredo?

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sábado, 18 de julho de 2009

hesitação







quando tudo em mim é silêncio
me confundo:
entre a calma e a desesperança
por que caminho o coração avança?

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terça-feira, 14 de julho de 2009

quê???

para meu filho, Ulysses


que tanto quê tem esta língua!
por que tanto porquê
a confundir quem escreve
quem se atreve
até quem lê?

por que separado junta
quando responde
porque sim
ou talvez
ou porque não aguento?

por que regra esquisita
no fim da frase
sem quê nem porquê
o diabo do quê tem que ter acento?

- Por que eu tenho que saber isso, mãe?
Gramática não serve pra nada...
- Menino, sua língua é sua pátria...

língua doce, tem saudade, tem mestiço
mameluco alvar na antropofagia inventada...
língua viva, movediça, ganhou letras, perdeu trema
última flor, que seja inculta
nem por isso menos bela
não há recorte de mundo
mais lindo que o dela!
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segunda-feira, 13 de julho de 2009

[frio, neblina...]

frio, neblina, garoa cerrada
ar úmido que tudo envolve

a névoa borra a visão do mundo
os olhos vagam
de um lugar
ao outro
procuram
querem outro gosto
outra voz, outro nome

mas o melhor sentido
está ainda adormecido
à espera de algum amarelo
que possa vir
surpreender e tingir
a cinza de morte
que nos encobre

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sábado, 11 de julho de 2009

avó


chove fino e o som doce da chuva compõe suave melodia

chove tanto, chove, chove...
ouço na chuva a berceuse que embala sonos infantis
sem bicho-papão nem monstro
apenas um beijo, um toque e um rosto
muito perto, muito doce
o olhar azul a cobrir-me e dizer: boa-noite
e a noite se abria em sonhos

chove ainda e a musica sutil da chuva é sempre nova

chovo eu mesma
defectiva do tempo ido
dos carinhos simples e quentes
que guardo em preciosa saudade,
o melhor dos teus presentes
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imagem: postal antigo mostrando a Ponte Pensil, Santos, SP

quinta-feira, 9 de julho de 2009

trama

há o novelo

de pouco em pouco
os fios desembaraçam
e entretecem
se entrelaçam
cosem novas tecituras

meadas claras
de cores puras

a agulha dança
bordando o ponto
cruzando a linha
que faz o encontro
nas entrelinhas

onde era nada
agora é laço
palavras rimam
tempo e espaço

de abismos fundos,
suprema altura

do imaginado
à semelhança
criou-se vida
literatura

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segunda-feira, 6 de julho de 2009

ciranda


minha poesia desconcerta
sem métrica
sopra a brasa encoberta
cutuca, coça, assanha
transgride
cria artimanha
a danada
joga na cara
a ruga inusitada
expõe imperfeições
assimétricas

sem rima
como as batatinhas
os sonhos natimortos
se espalharam pelo chão
de casinha
já não brinco
já não durmo
e nem sei o que foi feito
de meu coração
de menina

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imagem: : Vik Muniz

sábado, 4 de julho de 2009

pós



mutante
o novo se produz
a cada instante

mutável
nada é sólido
todo equilíbrio é instável

na temporalidade videocilpe-instantânea
a vida é faísca momentânea







quarta-feira, 1 de julho de 2009

Pensando na Vida: um médico com P maiúsculo


Dizem que os médicos são os piores pacientes. Rebeldes, indisciplinados, questionadores. Por isso mesmo, ser médico de colega não é pra qualquer um. Quando adoece, um médico quer o melhor. O mais competente, o mais atualizado, o de melhores resultados cirúrgicos, the best entre the best. Escolha sempre difícil, pois os currículos parecem ter cada vez mais páginas. No final das contas, depois de ouvir três ou quatro experts, se decide. E essa decisão acaba por ser tomada a partir de algo que não consta dos memoriais: o contato, a boa e velha relação médico-paciente, que tanto martelamos nos ouvidos dos nossos alunos.

Claro, é sempre melhor estar do outro lado da mesa. Mas, no momento em que uma doença nos deixa frágeis, temerosos, perplexos diante do sem-sentido da vida, é um alívio encontrar no colega médico a quem entregamos nossa saúde um olhar que vai além da competência técnica. Um gesto que diz algo como: vamos lá, estou com você, vai dar tudo certo. Nenhum cirurgião pode saber dos resultados antes de dar alta ao seu paciente. Esse gesto, portanto, não depende do anatomopatológico, não está nos guidelines, não se baseia em evidências. É um laço humano. É um laço amoroso.

Encontrar um médico que nos trate assim, nos dá, a nós, pacientes médicos chatos e rebeldes, além de um tratamento, uma lição. Uma lição sobre o ser médico, sobre o quanto somos transparentes diante daqueles que nos procuram, como é possível decodificar rapidamente, intuitivamente mesmo, esse algo-a-mais que se chama compromisso. Um médico assim, é mais que um doutor. É, de fato, um Professor.

Um grande beijo, Professor Pinotti, com toda minha gratidão.


O Professor José Aristodemo Pinotti faleceu na madrugada desta quarta-feira, 1 de julho, aos 74 anos, no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.