segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

ONDAS




elas vêm e vão
contínuas e arrítmicas
heraclitianamente
sempre outras,
as ondas

elas pulsam
em doce espuma
ou ríspidos soluços

cacos, restos
grãos de areia
sempre outros
sempre novos misturados
ao que já é velho e quebrado

cascalhos, crustáceos mortos
algas invisíveis
folhas imprevistas
de improváveis plantas nem sempre aquáticas
em pernas de siri sem corpos

varrem a praia
clandestinos
insuspeitos

águas-vivas sem história
espinhos de ouriço sem dor
sem passado sem lembranças
moluscos baços
furtacor

as ondas vêm e vão
desde quando?
sempre, sempre...
quase pendulares
longe e perto e longe e perto
num embalo musical e hipnótico

a vida e a morte ali
tão perto
uma e outra sempre tendo
como intersecção mítica
apenas a suposição
do incapturável
tempo


segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

MUDA PALAVRA MUDA



muitos sons muitas palavras
muitas letras muitas sílabas
muitos esses tantos plurais
num sibilo infinito zunindo em meus ouvidos

palavraspalavraspalavraspalavras
palavraspalavraspalavraspalavraspalavras
palavraspalavraspalavraspalavraspalavraspalavras
palavraspalavraspalavraspalavraspalavraspalavraspalavras
palavraspalavraspalavraspalavraspalavraspalavraspalavraspalavras

e tudo o que se quer
é um pouco de silêncio
de silêncio absoluto
vazio completo de sons
ausência de voz

instante mudo

enfim, mudo



quinta-feira, 7 de novembro de 2013

CHUVA



chove
chove londrinamente

a cidade se deixa despir
da colorida tropicalidade
vem de cinza
neblinosa, gris
como dama antiga 
a tomar chá e a contemplar flores

chove manso e frio
neste outono dissonante
do novembro primaveril

chove
chove docemente

e a luz baça da tarde
vem atiçar memórias perdidas
nas entrelinhas da infância
distante




domingo, 22 de setembro de 2013

Ø



bem porque não era plana
entre avesso e direito havia o meio
e no entremeio de dentro e fora
procurava sempre algum recheio
mas tirando a tinta, camada por camada
ia apenas mergulhando
ia apenas descobrindo
que no fundo havia
nada


imagem: foto minha feita no interior da instalação "ambientes infláveis" de hugo richard e natali tubenschlak, na casa daros, rio de janeiro, setembro/2013

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

SÓ (no) RIO




ando só nesta cidade
        que não conheço
anônima
        na cidade que tampouco me conhece

estranhas uma e outra
        uma à outra
nos olhamos, respeitosas

reciprocamente inquietas
         tomadas
pelos mistérios em nós
incompartilháveis


imagem: foto minha de  universo bordallo pinheiro - oi futuro flamengo - agosto/2013

sábado, 6 de julho de 2013

MACABÉA



macabéa
dura e preta
tão faminta, macabéa,
craquelada de tão seca

tão sem nada
tão perdida
pelo não sempre marcada
vai macabéa à deriva

de tudo assim, despossuída
no silêncio, no escuro
na escondidez dentro do quarto
macabéa no espelho
é preta e branca, é foto antiga

o que haverá por traz da máscara
de chão gretado como caatinga?
só ódio e raiva e inveja e dor?

um quase nada bem de mansinho
um som qualquer, meia palavra
toca na pele, toca na alma
e o que era cera, imóvel e fria,
se move um pouco
surpreende  o dia
e o que era morto, cacto e espinho
deseja a vida, quer alegria

é macabéa virando flor





domingo, 2 de junho de 2013

SENSATIONS

I can feel the sand under my feet  
I can feel
the sand and the water

they touch me
tenderly

I can feel the sun
its light, its warmth
holding me from the skin
to the deepest and darkness point
inside my body
inside my cells
inside my soul

it pushes me: live!

but these are all nothing
compared with the sound
the continuous sound of the waves
like music without words
like poetry without words
like the sweetest and kindest lullaby
that life could sing to me

sábado, 4 de maio de 2013

UM SONETO BEM MAGRINHO




caras
olhos
bocas
toques

cheiros
vozes
cores
raras

diz
logo
tudo

(ou) fica
sempre
mudo!



segunda-feira, 29 de abril de 2013

SENTIDOS


sol das tardes de outono
aquecendo, iluminando
desenhando sombras listradas
venezianas projetadas

janela ampla, chão de tacos
manta xadrez, franja vermelha
ruído distante: crianças brincando
o olhar passeia enquanto
a alma imagina
outras vidas noutros quartos
noutras casas
noutros mundos

tudo isso alinhavado pelo aroma
do café recém coado
do pão fresco com manteiga
da água de colônia
com perfume de lavanda ou alfazema

sol da tarde nos outonos
banhando atemporalmente as paredes:
vira o tempo do avesso
reconstrói a menina perplexa
perdida entre as ideias e as sombras
imersa na mistura dos sons domésticos
da música, do rádio
da voz da mãe
- da voz macia, da voz-abraço da mãe




domingo, 21 de abril de 2013

(pós) ÓPERA (tório)




o fio roto esconde as pontas
espalhadas pelo chão
irrecuperáveis contas

fazer de miçangas de corpo
umas letras sem palavras
não há sutura que dê conta

há um hiato entre a boca e o mundo
nuvens anestésicas de silêncio absoluto

das gargantas sopranas arregaladas
ecoa o som ausente: nada




domingo, 17 de março de 2013

DE VOLTA AO MAR



um pouco farta da neblina
ou da miopia, talvez
um pouco descrente
de qualquer possiblidade-lente
que confira alguma nitidez
ao que se vê ou se ouve ou se sente
ao que se quis ou se disse ou se fez

um pouco farta de sombra
de interferência e ruído
preferia mesmo um silêncio
todo escuro ou branco inteiro
um momento inerte, um fim
que desse à mente um descanso
e ao corpo um limite, um contraste
entre os nãos semiditos e o sim

farta, farta de tantas palavras
e gestos e toques e olhares
recolhe-se à concha o molusco
faz-se de morto e espera
que a corrente agitada dos mares
se aquietem ou apenas se cansem
se deixem estar – calmaria –
e o acabem levando a  uma praia
em meio a areia e espumas
e restos de algas e sonhos
na luz rósea do nascer de algum dia



terça-feira, 12 de março de 2013

CORALIFORME




há muitas vidas em mim que desconheço

infinitas: proliferam
quem somos?
uma espécie de colônia
um coral
habitado por milhões de pequenos seres
invisíveis a olho nu

lindos
sedutores
caleidoscopicamente coloridos
dançam coreografias orientais
diante dos olhares corretamente vestidos




quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

MODO, TEMPO E PESSOAS



tenho saudades das certezas absolutas de minha juventude!
saudades de mim, crente da solidez
das consistências, do saber

o tempo não marca de rugas só a pele!
enrugadas, as certezas-passas esfarelam
viram pó, desintegram

onde antes havia sempre razão,
hoje duvido
não sei de nada
nem sei bem do que não sei

no lugar vazio das certezas,
brota uma flor sem nome
colorida em aquarela
papel de seda quase transparente

doce e rara flor do tempo
que tinge a vida com pinceladas de delicadeza

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O QUE MORRE?


todo equilíbrio é instável

nenhum estado está dado
liquefaz-se o mundo num instante
o embrião não vinga
células murcham

onde antes era vida
só restam átomos, moléculas, fragmentos inanimados
a espera de outra oportunidade

sábado, 9 de fevereiro de 2013

FALA!



cá estou,
eu e minhas palavras,
tentando pôr alguma ordem nos sons

a gaveta das sílabas,
como arrumá-la?
como separá-las:
por cor? por tamanho?
por uso ou desuso,
por timbre, por tom?

desmonto as palavras
e depois delas, as sílabas
recorto os fonemas
as letras enfim

letras mudas
atômicas
não servem prá nada
são nada, são ocas

um engasgo antes do dito
uma invenção do som
aflito
preso na garganta
procurando as cordas
o ar ou a música
desejando, loucas,
ser o grito



quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

OPEN BODY



abre a janela
prá que venha o vento da noite
com seu cheiro de mar
sons de chuva, poeira de estrelas

deixe estar ali o corpo e sua história
a pele imperfeita, as manchas
deixe exposto um pouco de si
aos efeitos do universo infinito

a alguma fagulha, um astro, um átomo
que venha e pouse, ou marque
ou apenas toque

talvez baste
talvez não precisemos de muito mais:

sentir que há noite, e vento, e mar, e estrelas
sentir a chuva
sentir que, diluído nas entranhas do corpo,
há um ser
que sente


fonte da imagem: http://noticias.uol.com.br/album/album-do-dia/2012/04/04/imagens-do-dia---4-de-abril-de-2012.htm#fotoNav=77

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

INTO THE DEEP




a batalha é oculta, silenciosa, subterrânea
não se ouvem bombas
nem se veem corpos

ela é contínua, linha reta, isoelétrica

a batalha sempre será perdida
ao som do marcapasso secreto
o fim do túnel só tem uma saída

(enquanto isso, na superfície, nasce um dia
desabrocham flores, há música
uma garota se apaixona
alguém lê uma poesia)



fonte da imagem:http://mcr.aacrjournals.org/content/10/10.cover-expansion

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

DESLETRAS



queria saber fazer hoje um dizer sem palavras
silêncio de sons
dia mudo

um descanso de sentidos

queria, mesmo que só por um dia,
desfazer as teias das letras
separá-las, uma a uma
esparramá-las pelo chão,
contas de colar partido

misturar-me à vida das letras:
eu, uma consoante sem vogal
abecedário puro

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

SONETO UM POUCO MANCO



o que fica entre avesso e direito
entre antes e agora
na esquina dos dias
depois do instante?

o que pende no tempo
como se fosse no espaço
como onda ou partícula
inteiro pedaço?

o que sempre ao toque escapa
pois é sombra de si
é miragem?

o que diz de mim mais que silêncio?
sussurros ao vento:
coragem...



imagem:Vincent Van Gogh: Amandier en fleurs