sábado, 27 de fevereiro de 2010

prece



salvai-nos, senhor, da santa monotonia
da sagrada mesmice
da virtuosa mediocridade
que nos torna a todos o mesmo
o igual, o bege sem listras nem flores

concedei-nos, senhor, uns pecados
que entre o pó da chegada e o da partida
viva-se um pouco de umidade
reguem-se as sementes das idéias
de suor, esperma ou sangue

livrai-nos, senhor, de todo o desamor
de toda a indiferença
da placidez amornada
da acomodação covarde
que nos cala às madrugadas a voz desesperada

guiai-nos, senhor, aos caminhos obscuros
às trilhas virgens de pegadas
aos becos, aos cantos
às esquinas mal iluminadas
habitat e esconderijo dos ódios e dos desejos

fazei, senhor, de nosso corpo
sede de gozo ou de dor
mas purificai-nos, senhor, da mortificação do sono plácido
despido de sonhos e sem gemidos

abri-nos, senhor, as portas desta vida nesta vida
nesta única, nesta ínfima, nesta simples vida
e deixai-nos eternamente em paz
quando, um dia, subitamente ela se for
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imagem: o pecado original e a expulsão do paraíso, michelangelo

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

storm



vento louco
redemoinho
levando tudo
pelo caminho

levanta a poeira de corações cansados
faz chover lágrimas sobre o passado

venta muito
deixam-se ao vento
almas inquietas
de sofrimento

espalha em rodopios sonhos rasgados
solta a voz em gritos sacrificados

vento ciclone
que o mar agita
abre na carne
uma ferida

de pó e sangue se faz tornado
o corpo inerte capturado

que venha o vento
e a tempestade
que caiam raios
sobre a vontade

que o tempo volte ao ponto zero
desfaça em água o desespero

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fonte da imagem:http://cienciasnaturais8.files.wordpress.com/2007/12/141005hurricane.jpg

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

maresia



sou só um grão de areia
e a vida, as ondas do mar
espalmando a praia ali tão distraída
vulnerável às alvas espumas contingentes

somos assim, ínfimos grãos de areia
e as ondas do mar são a vida
surpreendendo em sons e turbilhões
a melodia quase repetida
em harmonias originais

deixemo-nos, então, simplesmente abertos
qual feridas
à fúria das invasões selvagens e transparentes

no fim de tudo
no fim dos tempos
seremos fusão de areia e ondas:
vívidos fragmentos

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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

[é preciso amar com calma]



é preciso amar com calma para não partir
para que não haja riscos
para que cada gesto fique bem no seu lugar
os sentimentos e os corpos permaneçam
ordenados e planos como as areias

é preciso ser paciente
para tratar de que o amor não adoeça
nem trinque de susto, ruído ou sobressalto
porque amor é sempre menino
mesmo que nasça em coração já gasto

é preciso que as ondas se quebrem suavemente
que o sol não seja por demais intenso
que o vento vente brisa
e que a chuva caia mansa e sem raios
pois amar é sempre delicado

é preciso finalmente deixar-se
barco sem velas de si abandonado
porque amor é livre e liberta
é reencontro diário na praia deserta
do desejo inesperado



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imagem: Mário Bhering - Marinha ao Entardecer
fonte da imagem: http://www.palaciodosleiloes.art.br/leilao/2006_nov/images/005.jpg

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

sons



mar e vento
encontro sinfônico

procura por dentro os acordes harmônicos
que poriam doçura em seu canto
e tons dourados na superficie verdeazulada

abrem-se-lhe as portas do ser
torna-se transparecido e etéreo
ele próprio todo água azul e verde e espuma branca

capturado no compasso de vento e mar
como reflexo no horizonte
um brilho
uma saudade
um olhar

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