terça-feira, 30 de setembro de 2008

Carta de Amor

Marcia Szajnbok

Queria te escrever uma carta
Que não fosse de despedida
Que, antes, fosse mesmo de chegada,
De começo, de ponto de partida,
Onde eu pudesse, amigo, te propor
Este meu jeito estranho de definir amor:

Norte na bússola dos sentimentos,
Referência a cada um desses momentos
Em que alguém se sente engolfado pelo vendaval dos acasos...

Companhia doce, terna, absolutamente especial
Nas cotidianas banalidades que chamamos vida-real
Alegres champanhes, ternos abraços, tristes silêncios...

Um tanto de desejo, de suave intimidade
Construída sobre o sólido pilar da liberdade:
A confiança absoluta em si mesmo e no outro
A ponto de não se preocupar se é muito ou pouco...

Grandeza sem medida, sem espaço ou tempo
Que no instante derradeiro, na presença clara da morte,
Nos sirva de conforto, justificativa e alento...

É tênue a fronteira entre amor e amizade,
Mera linha pontilhada feita de fumaça
Que esmaece tanto mais quanto mais o tempo passa...

Sentimento sem nome, toca o real
Sentimento sem tempo, portanto eterno
Nem grande nem pequeno, já que absoluto...

(Certamente Fernando Pessoa tinha razão:
Todas as cartas de amor são ridículas, a minha não é exceção.
Mas, afinal, amar não é também essa espécie de flagelo
Em que se mostra o ridículo, esperando que o outro enxergue o belo?)

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

[o amor é frágil...]


Marcia Szajnbok


o amor é frágil em estrutura
um sopro mais forte de desatenção
de palavra brusca ou gesto mal feito
qualquer coisa a mais ou a menos
é o que basta para lhe fazer um risco
uma trinca, um defeito...
vaso grego, cristal alemão,
porcelana da China, brinco de ouro
também é o amor precioso
- mas, uma vez quebrado
melhor outro...
'

sábado, 27 de setembro de 2008

Diálogos: Drummond com Leminski


AMOR E SEU TEMPO

Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe
`
valendo a pena e o preço terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.

[Carlos Drummond de Andrade]

AMOR BASTANTE

quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto.

[Paulo Leminski]

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

instantâneos


Marcia Szajnbok

queríamos sempre reter o primeiro encontro
o primeiro olhar, o sorriso, aquela dança...
queríamos segurar o tempo
segurar-nos, um ao outro e aos instantes
mas os dias nos empurram, a vida segue
e tudo que hoje existe, amanhã será lembrança...

então nos perguntamos
depois de tudo, depois de tanto
que fazer com esse amor extemporâneo
que alegra, traz prazer, dói e causa espanto?

queríamos, ah como queríamos...
mas não soubemos bem como querer
nem o quando, nem o onde, nem porquê
e nos perdemos nas esquinas do silêncio
insuspeitos que no outro sempre houvesse
a brasa leve, a chama pronta a reacender...

e então nos questionamos
depois de quase, depois de nada
onde guardar esse eterno momentâneo
que se desfaz, poeira em manhã enevoada?

tua promessa estará sempre
em preciosa caixa bem mantida
quem sabe venhas, quem sabe fiques
quem sabe um dia nos dê a vida...

fonte da imagem: http://i161.photobucket.com/albums/t224/marryannpopcorn/black-and-white.jpg

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Bolhas



Marcia Szajnbok


O dia era cinzento e a menina estava emburrada. Chuvisco e vento frio eram sinônimos de não ir à praia. Os adultos, entretidos consigo mesmos, não davam atenção àquele amuo sentado junto à terraça, os olhinhos lacrimosos postos no mar, lá em baixo. A avó, sempre sutil em seus movimentos, chegou perto, de mansinho. Trazia na mão uma caneca com estranho conteúdo aquoso. Com duas páginas arrancadas de uma revista antiga, produziu em instantes dois canudos improvisados, um para si própria, o outro para a pequena. Passou o canudo pela caneca e assoprou, lançando no ar uma constelação de pequenas bolhas coloridas. A menina sorriu. A avó repetiu o gesto, o menina o fez também. Minutos depois, estavam as duas ali, rindo, suas almas voando, livres como as bolhas de sabão, que ganhavam o espaço indiferentes á garoa, ao frio e aos demais adultos cinzentos.

***

Muitos anos mais tarde...

Uma mulher está só, triste e cinza como o dia que atravessou décadas. A avó, em matéria, já não há. Mas vive - tão querida! - no coração de menina que, dentro do peito, a mulher carrega. Num desses momentos em que a vida parece que está prestes a se desfazer em pequenas partículas de nada, a memória lhe traz de presente a cena de infância. Sem medo do ridículo, pois quem está só não corre o risco dos julgamentos, providencia o aparelhinho de soprar água e sabão. Vista de longe, seria difícil dizer-lhe a idade. A menina grande lança ao ar as bolhas coloridas em plena avenida da cidade pardacenta. A solidão resta, mas a tristeza atenua na mesma medida em que, brilhantes, as pequenas esferas se espalham, sem rumo nem limite.

fonte da imagem:http://z.about.com/d/chemistry/1/0/I/R/soapbubble.jpg

terça-feira, 23 de setembro de 2008

fardo

Marcia Szajnbok

ásperas memórias
arranham sonhos e idéias
machucam a boca
nem chegam a ser ditas

dúvidas inundam
afogadas, as palavras
estertoram e se misturam
criam nova língua incógnita

(nunca mais direi: te amo?)

entre o branco e o preto
toda a gama do arco-íris
se projeta dos meus olhos
mas só o que vejo
é engano
é engodo ou já passou

então
no que, nisto que me resta
de futuro,
poderei crer
eu, a descrente?

para quem
ou para que
ou aonde
hei de levar meu coração
descolorido
frio
e silente?

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

tudo bem, meu bem


Marcia Szajnbok



queria ver-te
mas não vieste
tudo bem, meu bem, tudo bem...
posso viver
sem luz também...

queria um beijo
me recusaste
tudo bem, meu bem, tudo bem...
posso seguir
sem sabor também...

queria amar-te
deste-me as costas
tudo bem, meu bem, tudo bem...
posso existir
sem calor também...

queria tanto
me deste nada
tudo bem, meu bem, tudo bem...
posso calar
e te esquecer também...


fonte da imagem:http://www.giovanipistola.com/

sábado, 20 de setembro de 2008

Poetrix

Marcia Szajnbok

Libertando

abri a janela e meu coração
cinza e frio foi-se embora
fazer o outono lá fora...

***
Múltipla escolha

se fosse possível voltar no tempo
cometeria novamente todos os erros -
exceto o de acreditar em acertos...

***
Desatento

estava em tua mão
me deixaste cair
partiu meu coração...

***
Preguiça

respingos de morte
que tempo de vida
desperdiça

imagem: Amanda Szajnbok de Faria - Luz e Sombra: Nuvens

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Diálogos: Pessoa com Bandeira




PRIMEIRO / O DOS CASTELOS

A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,

A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar sphyngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.

[Fernando Pessoa: Mensagem - Primeira Parte:Brasão]

PORTUGAL, MEU AVOZINHO

Como foi que temperaste,
Portugal, meu avozinho,
Esse gosto misturado
De saudade e de carinho?

Esse gosto misturado
De pele branca e trigueira
- Gosto de África e de Europa,
Que é o da gente brasileira?

Gosto de samba e de fado,
Portugal, meu avozinho,
Ai Portugal que ensinaste
Ao Brasil o teu carinho!

Tu de um lado, e do outro lado
Nós... No meio o mar profundo...
Mas, por mais fundo que seja,
Somos os dois de um só mundo

Grande mundo de ternura,
Feito de três continentes
Ai, mundo de Portugal,
Gente mãe de tantas gentes!

Ai Portugal de Camões,
Do bom trigo e do bom vinho
Que nos deste, ai avozinho
Esse gosto misturado,
Que é saudade e que é carinho
[Manoel Bandeira: Portugal, meu avozinho]

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

proparóxi-poetando

Marcia Szajnbok

ânimos
plácidos

sólidos
flácidos

mágicos
místicos

tônicos
fálicos

plásticos
úmidos

tímidos
cálidos

sílabas
átonas

bêbados
trágicos

óperas
bélicas

lapsos
tácitos


na metrópole cínica
não há pássaros
não há música
e meu cérebro ávido capta
proparoxítonas típicas

entre sinapses míticas
e memórias elípticas
lágrimas lívidas
nas páginas vívidas

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Navio Fantasma


Marcia Szajnbok

Um barco solto vai,
Navega à deriva no mar.
Onde irá?
Por que águas?
Que distância percorrerá?

Um dia aporta.
Uma praia, uma pedra,
Uma onda mais forte
Ou o vento...
Qual o mistério?
O que o tolhe em seu movimento?

Parado, preso, invadido de água e seres
Aprende a olhar, observa habitantes
Perplexo descobre vida ao redor...
Mas os dias passam
Vai-se o sol, vem a lua
E nada muda, nada acontece
Nenhuma surpresa abala a calmaria dos instantes.

De súbito, numa noite sem estrelas
É liberto da areia:
Vaga musica
Perfume encantado
Vai, livre, o barco tocado por uma sereia.

De volta às águas
Sem rota ou rumo
Há de vagar sempre à procura
Do contato único da moça inexistente
Que sonhou sentir naquela noite escura...

O tempo passa
Jamais a encontra
Qual navio fantasma por séculos navega
E reaparece de quando em quando
Na aurora fria em que se ouvem cantos
No horizonte enevoado das manhãs de inverno.

fonte da imagem:http://www.bbc.co.uk/devon/content/images/2006/07/12/creola_430x315.jpg

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

sem palavras

Marcia Szajnbok



debruço-me sobre o dicionário
de A a Z vou percorrendo
palavras e mais palavras:
...amor, bondade, carinho
devoção, estima, filia...
nenhuma me serve
nenhuma faz sentido ou rima
nem completa o pensamento
que, mudo, dentro de mim toma forma
ganha cor e perde as margens
capta-me todo o corpo pelo avesso
e, de dentro para fora,
me despe e transparece
aquilo que sinto e não nomeio
e que, mais real que a realidade,
me permite ser por inteiro
ainda que partida ao meio.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

um pouco do poetinha...

Vinícius de Moraes


A estrelinha polar

De repente o mar fosforesceu, o navio ficou silente
O firmamento lactesceu todo em poluções vibrantes de astros
E a Estrelinha Polar fez um pipi de prata no atlântico penico.


A morte

A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
Das brancas estrelas
Das loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida.

[Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes -Vinicius de Moraes - dispensa apresentações. Jornalista, diplomata, compositor, cronista e, sobretudo, poeta, nos deixou algumas das mais lindas páginas da poesia brasileira. Poeta maior, poetinha apenas por carinho. Sua obra é vasta e bem conhecida. Periodicamente postarei aqui alguns poemas desses que não se ouvem a toda hora. Reler Vinícius é sempre redescobri-lo. Reler Vinicius é sempre redescobrir o amor e a vida]

fonte:http://www.viniciusdemoraes.com.br/
fonte da imagem: http://www.viniciusdemoraes.com.br/fotos/sec_fotos.php?anos=60&muda_anos=go

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Estilhaços


Marcia Szajnbok



Amar
Amar-se
Há mar
Se amar
A Marcia... amar-se?
Amar a Marcia - quem haveria?

Estranho cacófato que põe Narciso no espelho...
Será esse o destino humano -
Não amar senão a si mesmo?

Abro a janela da minha solidão egoísta
Procuro, ávida, o cristal de um olhar
A fragilidade ou a força que há de quebrar
Esta redoma invisível
Que me aprisiona e asfixia...


quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Emergência


Marcia Szajnbok


O prédio tinha todo o estilo dos anos cinqüenta. Mesmo depois de reformas superficiais, a estrutura se manteve antiga. Talvez por isso a despreocupação com o isolamento acústico. À época de sua construção, provavelmente as pessoas não se sentiam tão invadidas em sua privacidade, não andavam todo o tempo tão armadas contra o outro, tomado sempre como inimigo iminente. Com as novas portas corta-fogo, a escadaria em caracol se transformara em câmara de eco, de modo que era possível ouvir qualquer coisa dita nos lances acima ou abaixo.
Logo ao abrir a porta do quarto andar, ela se deparou com o choro. Um soluçar forte subia pelo vão livre da escada. Temos todos algo dentro de nós que nos impulsiona para o segredo, ouvir atrás de portas, espiar pela fechadura. Tomada por curiosidade quase infantil, foi descendo devagar, pé ante pé para não assustar quem quer que fosse o dono do choro. Aprumou o ouvido: parecia choro de mulher.
A cada degrau que descia, mais nítida se tornava a cantilena. Se a vida real tivesse, como filmes, uma trilha sonora, deveria agora ouvir o Prelúdio da Bachiana no4, de Villa-Lobos, a trilha perfeita para captar essa forma tão peculiar que os brasileiros têm de ser triste: mistura-se à nostalgia portuguesa um pouco de desespero africano e de lamento indígena, quase silencioso; põe-se tudo isso ao sol e ao som de risos de crianças morenas e muito magras e pronto, está feita uma tristeza brasileira.
Envolta nessas divagações, ultrapassou a porta de acesso ao terceiro andar e ainda não via ninguém. Seguia o som apenas. Lembrou-se do avô e da história tantas vezes repetida do flautista que, com sua música, encantava os ratos e os levava embora da cidade. Sentia-se assim, um rato encantado pelo choro dolorido de alguém que ainda não via. Continuava, hipnotizada, descendo, descendo. Pensou que poderia ser um rato num castelo mal-assombrado, habitado por fantasmas sofredores que enchiam o ar com seus ruídos lamuriosos à espera da redenção, por parte de algum vivo corajoso, de suas dores passadas.
O volume crescia agora, devia estar perto a mulher que chorava ininterrupta. À medida que se aproximava, uma dor sem nome ou motivo a contaminava mais e mais. Seu corpo, seus pensamentos, ela toda funcionava agora como uma caixa de ressonância para o mal-estar disforme que emanava daquela criatura. Em segundos, delineou uma constelação de associações: fatos, temores, pensamentos, situações, palavras. Tantas palavras para circunscrever aquela agitação de sentimentos, aquela pulsação de um não-sei-quê interno que transbordava, muitas vezes no final da tarde dos domingos, quando a vida sempre corria o risco de parecer sem sentido ou valor.
Na virada do penúltimo caracol da escada, avistou-a. De costas, encolhida junto à parede em posição quase fetal, as mãos entrelaçadas em torno dos joelhos, a cabeça deitada sobre as mãos. Parecia uma menina muito magra, miúda. O cabelo era curto, pintado de um vermelho berrante, espetado em estalagmites de gel fixador. Havia tatuagens por toda a nuca e parte dos braços. Fora da segurança habitual, perguntou-se: devia parar ou continuar descendo como se não a tivesse visto? Com certeza se tratava de uma paciente. Num hospital psiquiátrico, alguém naquela condição só podia ser paciente. Uma cena insólita: a paciente sentada na escada, chorando, sozinha. A doutora em pé, alguns degraus acima, paralisada sem saber muito bem como se comportar. Havia naquela moça uma certa impertinência. Aquele não era lugar para ficar chorando, afinal! Que fosse chorar no resguardo de uma sala, durante a consulta, no espaço protegido pela porta e pelo sigilo médico. Ali, na área de circulação, seu choro desafiava o mundo. Ela chorava como se discursasse. “Não sou eu a depressiva? Pois bem... vou sê-lo... Mas serei depressiva bem aqui, no meio do caminho, para que todos precisem se perguntar o que fazer com a minha dor... E que atire a primeira pedra, aquele dentre vós que nunca tiver sentido dor”.
Sem pensar muito, desceu os degraus que faltavam e sentou-se também na escada, ao lado da moça do cabelo carmim. Depois de alguns momentos, ciente da presença alheia ali tão próxima, ela levantou os olhos enormes, muito verdes, cílios longos. Em algum lugar dentro de sua mansão mal-assombrada a doutora reconheceu aquela expressão. Perda, solidão, desamparo. Ficaram ali, alguns segundoseternidades, olhando-se reciprocamente, em silêncio. Duas mulheres quaisquer, compartilhando esse tipo de angústia que só as mulheres sabem sustentar.
Na falta de coisa melhor, a doutora estendeu para a moça um pacote de lenços de papel que tirou da bolsa. Ela aceitou a oferta, inicialmente com os olhos postos nos lenços, como que a reconhecê-los, sem muita certeza quanto a sua utilidade. Vista assim de muito perto, com o rosto vermelho, inchado e molhado, ela não parecia tão jovem. Havia uma discordância entre o rosto e o resto do corpo, como se a cabeça tivesse vindo décadas antes. Sorriu um sorriso um tanto sem graça, em agradecimento. O que agradecia? Os lenços? O olhar cúmplice? O instante de companhia?
Sorriu de volta a doutora, sem muita consciência de que também ela estava de algum modo grata. Levantou-se, despediu-se da suposta paciente com um aceno, sem palavras. Viu de relance, ao iniciar a descida do último lance da escada, que ela abria o pacote e enxugava o rosto com os lenços. Depois seguiu adiante em direção à porta da rua. Sentia uma espécie de alívio. Não o alívio do dever cumprido, pois não houvera dever algum posto em questão. Uma espécie de suspiro íntimo, desses que se dão diante do espelho, ou por vezes só no escuro do quarto depois que o mundo adormece. O conforto da possibilidade, do laço, da ponte, do puro e nada simples contato com o outro humano. O dia estava lindo. Em seus ouvidos, Villa-Lobos cedera lugar a um samba. Uma típica manhã de primavera brasileira: céu azul, sol forte, os ipês todos floridos. Saiu cantarolando “a dor da gente não sai no jornal”...

terça-feira, 9 de setembro de 2008

menos







Marcia Szajnbok

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Dupla Face


Marcia Szajnbok



Onde, enfim, o meu lugar?


Eu, que tanto sonhei com o mundo,
Me esqueci de caminhar...
Que queria ir com as ondas,
Não aprendi a nadar...
Pensei-me pássaro de asas grandes
Não fui capaz de me lançar...

Como, então, hei de unir
Corpo e mente em conflito
Tão distantes...
Um sempre estático, pés no chão, âncora.
A outra liberta, fugidia, em eterna busca
Mutante.



sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Ismália



Alphonsus de Guimaraens


Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...


[Afonso Henriques da Costa Guimaraens, nasceu em Ouro Preto (MG), em 1870 e faleceu em Mariana (MG), em 1921. Bacharelou-se em Direito, em 1894, em sua terra natal e colaborou em vários jornais, mineiros e paulistas, desde os tempos de estudante. Seu primeiro livro de poesia, Dona Mística, (1892/1894), foi publicado em 1899. Outras obras incluem "Kyriale" (1902), e as publicações póstumas "Pauvre Lyre" (1921), "Pastoral dos Crentes do Amor e da Morte" (1923), "Poesias" (1938). Fez parte do grupo simbolista de São Paulo e sua poesia é marcada pela espiritualidade. Admirador de Cruz e Souza e influenciado por Verlaine, também apresenta melancolia e ternura. A morte de sua noiva Constança, em 1888, marcou profundamente sua vida e sua obra, e é tema recorrente.]


quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Soneto


Marcia Szajnbok


Porque no final das madrugadas
Ponho-me a olhar para as estrelas
Serei romântica e anacrônica?
Será preciso não mais vê-las

Prá viver num mundo pós-moderno
Em que o tempo não passa, escorre,
Onde tudo o que parece eterno
Dura só um segundo e já morre?

Na minha janela de solidão
A aurora estrelada traz teu olhar
Faz meu dia nascer e o azul brilhar...

Vasto universo que é meu coração
Sem teu brilho seria deserto
Triste céu sem estrelas por perto...
imagem: The Stary Night, Vincent van Gogh

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Microcontos: Coisas de Mulher

Marcia Szajnbok


I.
Dez dias de atraso e um desejo imenso. Entrou no laboratório com o coração aos pulos.
Abriu o exame: NEGATIVO
O peito doeu. Num choro, o atraso acabou.
II.
As prateleiras da perfumaria, abarrotadas de frascos, vendiam beleza e juventude por diversos preços. Pegou um tubo de creme: “Exfoliante para o Corpo”. Pensou com seus botões:
- Quando é que vão inventar um exfoliante para a alma?
III.
Namorico de infância. Não se viam há décadas.
- Calor hoje, não?
- Sim... capaz de chover mais tarde...
E, da previsão do tempo ao beijo-nostalgia bastaram três segundos.
IV.
Dias e dias pensando no que vestir na festa e, ao entrar, lá estava ela, a garota mais chata da turma, com uma roupa idêntica!
Por dentro: gasolina e fósforos, o vestido e a chatice transformados em carvão em segundos.
Por fora: sorriso amarelo, três beijinhos, veja só como temos bom gosto!
V.
Ansiedade, apreensão, expectativas. A primeira vez tinha de ser perfeita.
- Você não disse que era virgem? Como é que não sangrou?
Os corpos ainda juntos, as almas irrecuperavelmente apartadas.
O amor que tu me tinhas era vidro e se quebrou...

imagem: Girl in the Bath, Edgar Degas

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Luz

Marcia Szajnbok

Para que é preciso um corpo?
Há que se deixá-lo
Qual um casulo
Para que a alma
Dele se desprenda
Livre borboleta...

Estamos em muitas partes
Diluídos, dispersos
Muito além da matéria que aprisiona...

A essência é vela
Efêmera
Deixa no ar um rastro
De luz, calor, perfume...

Para isso estamos no mundo:
Deixar uma pegada
Uma marca
Um brilho, um clarão
Mesmo um único rabisco...
Depois, ir embora
Apenas apagar
Sossegados
E silenciosos.


segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Carta


Marcia Szajnbok


Apertou o envelope contra o peito num gesto de verdadeiro abraço. A emoção percorria-lhe o corpo num arrepio de excitação cuja intensidade o surpreendeu – já não se supunha capaz de sentir tanto. O primeiro impulso era abri-lo ali mesmo, mas conteve-se. Algo dessa monta não deveria ser tocado em público, ao alcance de olhares bisbilhoteiros e despreparados para tal revelação. Guardou seu tesouro dentro do paletó, preso à cintura, entre a calça e a camisa, de modo a ter sempre a certeza de que não o havia perdido. Por um instante hesitou – seria melhor ir a pé ou apanhar um taxi? Optou por caminhar. O dia estava agradável, céu azul, sol de outono, ameno. Além disso, gostava de pensar caminhando. E precisava pensar bastante. Pensar no que fazer a partir de então, como se comportar diante da resposta que estava prestes a ter.
Pôs-se a caminho, num passo ritmado. Olhava para frente, mas nada via do que ali estava. Via o passado. Via, com clareza cinematográfica, o momento exato em que aquela busca começara.
Era 1975. Tinha certeza do ano, porque a questão lhe fora plantada pela professora de português da oitava série, Dona Maria Helena. Lembrava-se bem dela. Morena, cabelos curtos, austera, muito exigente. Levava a tarefa de ensinar português como uma missão patriótica, uma cruzada. Se pecara pela rigidez um tanto excessiva, teve o mérito de introduzi-lo ao fantástico mundo da escrita que, de paixão, passara a modo de vida. Depois da escola, a faculdade de letras, o mestrado em literatura brasileira, o doutorado sobre Machado de Assis.
Na oitava série era um garoto tímido, muito magro, alto, deslocado no fundo da sala. Muito quieto, poucos amigos, amores sempre secretos. Estudava. Cumpria com capricho todas as tarefas, e o trabalho proposto por Dona Maria Helena não fora exceção: ler “Dom Casmurro”, redigir um resumo da obra e manifestar uma opinião acerca do suposto adultério de Capitu, que atormentava Bentinho ao longo do romance.
A leitura trouxe-lhe enorme prazer. Localizava nesse primeiro contato com o texto machadiano a origem da admiração que lhe acompanhava desde então, conduzindo-o a várias releituras e a descobertas de aspectos sempre novos e inusitados na prosa de Machado de Assis. Redigir o resumo foi tarefa simples, pois em termos de enredo não havia muito para se discutir na história.
O problema surgiu na terceira parte do trabalho. Revia-se, na madrugada, a casa toda adormecida, e ele lá, o garoto magro diante da folha de papel em branco, a caneta pendendo dos dedos paralisados. Não conseguia produzir nenhuma linha, nada. Manifestar uma opinião... Não lhe vinha opinião nenhuma à cabeça. Releu o livro duas ou três vezes, à procura de um sinal escondido que o autor pudesse ter deixado em alguma entrelinha, mas não encontrara nada. Por fim, entregou o trabalho incompleto, o que lhe valeu uma nota seis e meio. A nota, em si, não tivera grande importância. A incompletude, sim. A falta de resposta, a dúvida. Um pouco da angústia de Bentinho se instalou, desde então, nele próprio.
Assustou-se com o esbarrão que lhe deu a mocinha espevitada que, fazendo-se ainda mais magra do que de fato era, esgueirava-se entre os transeuntes sem prestar muita atenção nos pés que pisava ou nos pacotes que derrubava. Instintivamente levou a mão ao envelope, como quem checa o curativo sobre a cicatriz da cirurgia recente. Suspiro. Estava lá, intacto. Faltavam ainda alguns quarteirões, o que lhe dava tempo para mais e mais pensamentos.
Capitu... que mulher! Seria assim tão diferente das outras?
Os tais olhos de ressaca, parecia-lhe sempre reencontrá-los nas várias faces femininas que desfilaram quer sob seu interesse discreto, quer sob um apaixonamento arrebatado ao longo das últimas três décadas. E foram muitas, e diferentes. Loiras, morenas, umas intelectualizadas outras muito sensuais, refinadas, vulgares, houve virgens e promíscuas. A nenhuma conseguiu manter-se ligado. Diante de todas, a reedição da dúvida casmurrenta: era fiel? Não havia em sua realidade um melhor amigo que pudesse desempenhar o papel de Escobar, mas esse era apenas um mero detalhe. O mundo estava cheio de homens. E, na maior parte do tempo, pensava que todos esses outros homens do mundo deviam saber algo sobre as mulheres que lhe escapava. E, detentores desse saber, teriam certamente a preferência de qualquer uma delas. Uma equação que resultava sempre zero: ele próprio mais a mulher que amava mais um outro homem, igual a perda, sempre.
Não se considerava propriamente ciumento. O ciúme pressupõe um certo sentimento de posse sobre o outro que jamais sentira. Essa desconfiança era uma espécie de somatória entre a dúvida teórica acerca da possível ou impossível fidelidade feminina, e a sensação subjetiva de insuficiência e incapacidade que lhe acompanhava desde a infância.
Nesse cenário, o que começou como trabalho escolar, passou a discussão acadêmica e se tornara, com o tempo, uma questão obsessiva. De algum modo mágico, parecia supor que, se o próprio Machado lhe garantisse a inocência de Capitu, ele próprio poderia absolver da dúvida todas as mulheres, ele próprio estaria liberto para amar sem medo de um dia ver, no rosto de um eventual filho, um semblante que não fosse o seu. E foi com esse objetivo, considerado totalmente delirante tanto por seu orientador de tese como por seus colegas, que se pôs a investigar não apenas todas as referências bibliográficas que remetessem ao Dom Casmurro, mas também toda sorte de manuscritos atribuídos a Machado de Assis que mencionassem a obra ou seus personagens.
Não saberia precisar quantas horas passara em bibliotecas e museus, em sucessivas idas ao Rio de Janeiro, em passeios pelo centro antigo, pelo morro do Livramento, Catete e Cosme Velho. Dias e dias respirando poeira e ácaros em arquivos de jornais e revistas do século XIX. Lia, escrevia, fotografava, resumia. Um trabalho insano que desconhecia os limites do sono e da fome. Em certos momentos, tomado por uma espécie de transe, parecia sentir a presença do autor perto de si. Queria ser vidente, pensava, para simplesmente perguntar-lhe, afinal Capitu traiu ou não traiu Bentinho? Mas o tal fantasma jamais se mostrara e, nem mesmo invisível, lhe aplacara a curiosidade em algum sussurro vindo de outras dimensões.
Nunca se viu tese de doutorado mais completa sobre um autor. Tornara-se seu quase íntimo, sabia mais detalhes da vida cotidiana de Machado de Assis do que de qualquer pessoa com quem convivesse. Sabia muito. Sabia quase tudo. Construíra hipóteses e mais hipóteses baseadas nos muitos documentos, alguns genuínos outros apócrifos, que conseguira recuperar. E não saíra do lugar. Tal como na madrugada angustiada da sua adolescência, não conseguia ainda hoje manifestar sua opinião com um grau satisfatório de certeza sobre a dúvida infernal que atormentara a vida de Bentinho e a sua.
Parou diante do farol vermelho para atravessar a avenida. Já estava quase chegando ao prédio onde morava. Sentia o corpo encharcado, o suor vindo do exercício e da emoção. Pagou caro por aquele pedaço de papel. Já havia comprado outros antes. Já se lhe tinham custado um automóvel, algumas jóias velhas que alguma das bisavós deixara, e as duas coleções que foram o legado de seu pai, uma de selos e a outra de canetas antigas. Não gostava daquilo, afinal. Vendera-as. Tinha se tornado muito conhecido no mundo subterrâneo da compra e venda de documentos antigos, a maioria produto de furtos a museus ou meras falsificações. Mas não se preocupava com isso de antemão. Surgia um documento, comprava-o. Se fosse falso, logo descobriria. E havia sempre a esperança de que fosse original. E a outra esperança, ainda maior, de que fosse a chave para desvendar o segredo de Capitu.
Foi por esse caminho que chegara ao envelope que trazia agora sob o paletó. Todas as referências pareciam garantir que se tratava de manuscrito genuíno. Uma carta, dirigida à Dona Carolina pouco antes de sua morte, na qual Machado declarava, a pedido da esposa querida e enferma, a verdade sobre a história de Capitu, Bentinho e Escobar. A tal carta fora escondida por décadas a pedido do próprio autor e de seus editores. Passou de mão em mão por familiares e colecionadores. E agora lá estava. Era sua. Saberia.
Foi difícil abrir a porta, pois a mão trêmula tinha dificuldade para compatibilizar chave e fechadura. Entrou em casa, percorreu o ambiente com o olhar, certificando-se de que estava mesmo sozinho. Puxou as cortinas, tirou o fone do gancho, não queria ser interrompido na sua leitura por qualquer ligação inoportuna. Ligou a lâmpada de leitura, ajeitou-se na poltrona, limpou os óculos. Abriu o envelope de papel pardo. Lá dentro, outro envelope, este cheio de vincos amarelados, como um rosto cujas rugas contam histórias e denunciam a idade. Numa caligrafia inexplicavelmente antiga, lia-se “a minha querida Dona Carolina”. O coração disparado, a boca seca, o espírito em êxtase: estava ali sua resposta. Desvendaria finalmente o segredo. Abriu com cuidado a correspondência, acariciando a carta como se tocasse as mãos que a escreveram. Abriu-a. Leu. Um movimento discreto nos lábios. Seria um sorriso, ou o prenúncio de um choro?

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Machado de Assis (1839-1908) publicou "Dom Casmurro" em 1899.