Marcia Szajnbok
Apertou o envelope contra o peito num gesto de verdadeiro abraço. A emoção percorria-lhe o corpo num arrepio de excitação cuja intensidade o surpreendeu – já não se supunha capaz de sentir tanto. O primeiro impulso era abri-lo ali mesmo, mas conteve-se. Algo dessa monta não deveria ser tocado em público, ao alcance de olhares bisbilhoteiros e despreparados para tal revelação. Guardou seu tesouro dentro do paletó, preso à cintura, entre a calça e a camisa, de modo a ter sempre a certeza de que não o havia perdido. Por um instante hesitou – seria melhor ir a pé ou apanhar um taxi? Optou por caminhar. O dia estava agradável, céu azul, sol de outono, ameno. Além disso, gostava de pensar caminhando. E precisava pensar bastante. Pensar no que fazer a partir de então, como se comportar diante da resposta que estava prestes a ter.
Pôs-se a caminho, num passo ritmado. Olhava para frente, mas nada via do que ali estava. Via o passado. Via, com clareza cinematográfica, o momento exato em que aquela busca começara.
Era 1975. Tinha certeza do ano, porque a questão lhe fora plantada pela professora de português da oitava série, Dona Maria Helena. Lembrava-se bem dela. Morena, cabelos curtos, austera, muito exigente. Levava a tarefa de ensinar português como uma missão patriótica, uma cruzada. Se pecara pela rigidez um tanto excessiva, teve o mérito de introduzi-lo ao fantástico mundo da escrita que, de paixão, passara a modo de vida. Depois da escola, a faculdade de letras, o mestrado em literatura brasileira, o doutorado sobre Machado de Assis.
Na oitava série era um garoto tímido, muito magro, alto, deslocado no fundo da sala. Muito quieto, poucos amigos, amores sempre secretos. Estudava. Cumpria com capricho todas as tarefas, e o trabalho proposto por Dona Maria Helena não fora exceção: ler “Dom Casmurro”, redigir um resumo da obra e manifestar uma opinião acerca do suposto adultério de Capitu, que atormentava Bentinho ao longo do romance.
A leitura trouxe-lhe enorme prazer. Localizava nesse primeiro contato com o texto machadiano a origem da admiração que lhe acompanhava desde então, conduzindo-o a várias releituras e a descobertas de aspectos sempre novos e inusitados na prosa de Machado de Assis. Redigir o resumo foi tarefa simples, pois em termos de enredo não havia muito para se discutir na história.
O problema surgiu na terceira parte do trabalho. Revia-se, na madrugada, a casa toda adormecida, e ele lá, o garoto magro diante da folha de papel em branco, a caneta pendendo dos dedos paralisados. Não conseguia produzir nenhuma linha, nada. Manifestar uma opinião... Não lhe vinha opinião nenhuma à cabeça. Releu o livro duas ou três vezes, à procura de um sinal escondido que o autor pudesse ter deixado em alguma entrelinha, mas não encontrara nada. Por fim, entregou o trabalho incompleto, o que lhe valeu uma nota seis e meio. A nota, em si, não tivera grande importância. A incompletude, sim. A falta de resposta, a dúvida. Um pouco da angústia de Bentinho se instalou, desde então, nele próprio.
Assustou-se com o esbarrão que lhe deu a mocinha espevitada que, fazendo-se ainda mais magra do que de fato era, esgueirava-se entre os transeuntes sem prestar muita atenção nos pés que pisava ou nos pacotes que derrubava. Instintivamente levou a mão ao envelope, como quem checa o curativo sobre a cicatriz da cirurgia recente. Suspiro. Estava lá, intacto. Faltavam ainda alguns quarteirões, o que lhe dava tempo para mais e mais pensamentos.
Capitu... que mulher! Seria assim tão diferente das outras?
Os tais olhos de ressaca, parecia-lhe sempre reencontrá-los nas várias faces femininas que desfilaram quer sob seu interesse discreto, quer sob um apaixonamento arrebatado ao longo das últimas três décadas. E foram muitas, e diferentes. Loiras, morenas, umas intelectualizadas outras muito sensuais, refinadas, vulgares, houve virgens e promíscuas. A nenhuma conseguiu manter-se ligado. Diante de todas, a reedição da dúvida casmurrenta: era fiel? Não havia em sua realidade um melhor amigo que pudesse desempenhar o papel de Escobar, mas esse era apenas um mero detalhe. O mundo estava cheio de homens. E, na maior parte do tempo, pensava que todos esses outros homens do mundo deviam saber algo sobre as mulheres que lhe escapava. E, detentores desse saber, teriam certamente a preferência de qualquer uma delas. Uma equação que resultava sempre zero: ele próprio mais a mulher que amava mais um outro homem, igual a perda, sempre.
Não se considerava propriamente ciumento. O ciúme pressupõe um certo sentimento de posse sobre o outro que jamais sentira. Essa desconfiança era uma espécie de somatória entre a dúvida teórica acerca da possível ou impossível fidelidade feminina, e a sensação subjetiva de insuficiência e incapacidade que lhe acompanhava desde a infância.
Nesse cenário, o que começou como trabalho escolar, passou a discussão acadêmica e se tornara, com o tempo, uma questão obsessiva. De algum modo mágico, parecia supor que, se o próprio Machado lhe garantisse a inocência de Capitu, ele próprio poderia absolver da dúvida todas as mulheres, ele próprio estaria liberto para amar sem medo de um dia ver, no rosto de um eventual filho, um semblante que não fosse o seu. E foi com esse objetivo, considerado totalmente delirante tanto por seu orientador de tese como por seus colegas, que se pôs a investigar não apenas todas as referências bibliográficas que remetessem ao Dom Casmurro, mas também toda sorte de manuscritos atribuídos a Machado de Assis que mencionassem a obra ou seus personagens.
Não saberia precisar quantas horas passara em bibliotecas e museus, em sucessivas idas ao Rio de Janeiro, em passeios pelo centro antigo, pelo morro do Livramento, Catete e Cosme Velho. Dias e dias respirando poeira e ácaros em arquivos de jornais e revistas do século XIX. Lia, escrevia, fotografava, resumia. Um trabalho insano que desconhecia os limites do sono e da fome. Em certos momentos, tomado por uma espécie de transe, parecia sentir a presença do autor perto de si. Queria ser vidente, pensava, para simplesmente perguntar-lhe, afinal Capitu traiu ou não traiu Bentinho? Mas o tal fantasma jamais se mostrara e, nem mesmo invisível, lhe aplacara a curiosidade em algum sussurro vindo de outras dimensões.
Nunca se viu tese de doutorado mais completa sobre um autor. Tornara-se seu quase íntimo, sabia mais detalhes da vida cotidiana de Machado de Assis do que de qualquer pessoa com quem convivesse. Sabia muito. Sabia quase tudo. Construíra hipóteses e mais hipóteses baseadas nos muitos documentos, alguns genuínos outros apócrifos, que conseguira recuperar. E não saíra do lugar. Tal como na madrugada angustiada da sua adolescência, não conseguia ainda hoje manifestar sua opinião com um grau satisfatório de certeza sobre a dúvida infernal que atormentara a vida de Bentinho e a sua.
Parou diante do farol vermelho para atravessar a avenida. Já estava quase chegando ao prédio onde morava. Sentia o corpo encharcado, o suor vindo do exercício e da emoção. Pagou caro por aquele pedaço de papel. Já havia comprado outros antes. Já se lhe tinham custado um automóvel, algumas jóias velhas que alguma das bisavós deixara, e as duas coleções que foram o legado de seu pai, uma de selos e a outra de canetas antigas. Não gostava daquilo, afinal. Vendera-as. Tinha se tornado muito conhecido no mundo subterrâneo da compra e venda de documentos antigos, a maioria produto de furtos a museus ou meras falsificações. Mas não se preocupava com isso de antemão. Surgia um documento, comprava-o. Se fosse falso, logo descobriria. E havia sempre a esperança de que fosse original. E a outra esperança, ainda maior, de que fosse a chave para desvendar o segredo de Capitu.
Foi por esse caminho que chegara ao envelope que trazia agora sob o paletó. Todas as referências pareciam garantir que se tratava de manuscrito genuíno. Uma carta, dirigida à Dona Carolina pouco antes de sua morte, na qual Machado declarava, a pedido da esposa querida e enferma, a verdade sobre a história de Capitu, Bentinho e Escobar. A tal carta fora escondida por décadas a pedido do próprio autor e de seus editores. Passou de mão em mão por familiares e colecionadores. E agora lá estava. Era sua. Saberia.
Foi difícil abrir a porta, pois a mão trêmula tinha dificuldade para compatibilizar chave e fechadura. Entrou em casa, percorreu o ambiente com o olhar, certificando-se de que estava mesmo sozinho. Puxou as cortinas, tirou o fone do gancho, não queria ser interrompido na sua leitura por qualquer ligação inoportuna. Ligou a lâmpada de leitura, ajeitou-se na poltrona, limpou os óculos. Abriu o envelope de papel pardo. Lá dentro, outro envelope, este cheio de vincos amarelados, como um rosto cujas rugas contam histórias e denunciam a idade. Numa caligrafia inexplicavelmente antiga, lia-se “a minha querida Dona Carolina”. O coração disparado, a boca seca, o espírito em êxtase: estava ali sua resposta. Desvendaria finalmente o segredo. Abriu com cuidado a correspondência, acariciando a carta como se tocasse as mãos que a escreveram. Abriu-a. Leu. Um movimento discreto nos lábios. Seria um sorriso, ou o prenúncio de um choro?
Pôs-se a caminho, num passo ritmado. Olhava para frente, mas nada via do que ali estava. Via o passado. Via, com clareza cinematográfica, o momento exato em que aquela busca começara.
Era 1975. Tinha certeza do ano, porque a questão lhe fora plantada pela professora de português da oitava série, Dona Maria Helena. Lembrava-se bem dela. Morena, cabelos curtos, austera, muito exigente. Levava a tarefa de ensinar português como uma missão patriótica, uma cruzada. Se pecara pela rigidez um tanto excessiva, teve o mérito de introduzi-lo ao fantástico mundo da escrita que, de paixão, passara a modo de vida. Depois da escola, a faculdade de letras, o mestrado em literatura brasileira, o doutorado sobre Machado de Assis.
Na oitava série era um garoto tímido, muito magro, alto, deslocado no fundo da sala. Muito quieto, poucos amigos, amores sempre secretos. Estudava. Cumpria com capricho todas as tarefas, e o trabalho proposto por Dona Maria Helena não fora exceção: ler “Dom Casmurro”, redigir um resumo da obra e manifestar uma opinião acerca do suposto adultério de Capitu, que atormentava Bentinho ao longo do romance.
A leitura trouxe-lhe enorme prazer. Localizava nesse primeiro contato com o texto machadiano a origem da admiração que lhe acompanhava desde então, conduzindo-o a várias releituras e a descobertas de aspectos sempre novos e inusitados na prosa de Machado de Assis. Redigir o resumo foi tarefa simples, pois em termos de enredo não havia muito para se discutir na história.
O problema surgiu na terceira parte do trabalho. Revia-se, na madrugada, a casa toda adormecida, e ele lá, o garoto magro diante da folha de papel em branco, a caneta pendendo dos dedos paralisados. Não conseguia produzir nenhuma linha, nada. Manifestar uma opinião... Não lhe vinha opinião nenhuma à cabeça. Releu o livro duas ou três vezes, à procura de um sinal escondido que o autor pudesse ter deixado em alguma entrelinha, mas não encontrara nada. Por fim, entregou o trabalho incompleto, o que lhe valeu uma nota seis e meio. A nota, em si, não tivera grande importância. A incompletude, sim. A falta de resposta, a dúvida. Um pouco da angústia de Bentinho se instalou, desde então, nele próprio.
Assustou-se com o esbarrão que lhe deu a mocinha espevitada que, fazendo-se ainda mais magra do que de fato era, esgueirava-se entre os transeuntes sem prestar muita atenção nos pés que pisava ou nos pacotes que derrubava. Instintivamente levou a mão ao envelope, como quem checa o curativo sobre a cicatriz da cirurgia recente. Suspiro. Estava lá, intacto. Faltavam ainda alguns quarteirões, o que lhe dava tempo para mais e mais pensamentos.
Capitu... que mulher! Seria assim tão diferente das outras?
Os tais olhos de ressaca, parecia-lhe sempre reencontrá-los nas várias faces femininas que desfilaram quer sob seu interesse discreto, quer sob um apaixonamento arrebatado ao longo das últimas três décadas. E foram muitas, e diferentes. Loiras, morenas, umas intelectualizadas outras muito sensuais, refinadas, vulgares, houve virgens e promíscuas. A nenhuma conseguiu manter-se ligado. Diante de todas, a reedição da dúvida casmurrenta: era fiel? Não havia em sua realidade um melhor amigo que pudesse desempenhar o papel de Escobar, mas esse era apenas um mero detalhe. O mundo estava cheio de homens. E, na maior parte do tempo, pensava que todos esses outros homens do mundo deviam saber algo sobre as mulheres que lhe escapava. E, detentores desse saber, teriam certamente a preferência de qualquer uma delas. Uma equação que resultava sempre zero: ele próprio mais a mulher que amava mais um outro homem, igual a perda, sempre.
Não se considerava propriamente ciumento. O ciúme pressupõe um certo sentimento de posse sobre o outro que jamais sentira. Essa desconfiança era uma espécie de somatória entre a dúvida teórica acerca da possível ou impossível fidelidade feminina, e a sensação subjetiva de insuficiência e incapacidade que lhe acompanhava desde a infância.
Nesse cenário, o que começou como trabalho escolar, passou a discussão acadêmica e se tornara, com o tempo, uma questão obsessiva. De algum modo mágico, parecia supor que, se o próprio Machado lhe garantisse a inocência de Capitu, ele próprio poderia absolver da dúvida todas as mulheres, ele próprio estaria liberto para amar sem medo de um dia ver, no rosto de um eventual filho, um semblante que não fosse o seu. E foi com esse objetivo, considerado totalmente delirante tanto por seu orientador de tese como por seus colegas, que se pôs a investigar não apenas todas as referências bibliográficas que remetessem ao Dom Casmurro, mas também toda sorte de manuscritos atribuídos a Machado de Assis que mencionassem a obra ou seus personagens.
Não saberia precisar quantas horas passara em bibliotecas e museus, em sucessivas idas ao Rio de Janeiro, em passeios pelo centro antigo, pelo morro do Livramento, Catete e Cosme Velho. Dias e dias respirando poeira e ácaros em arquivos de jornais e revistas do século XIX. Lia, escrevia, fotografava, resumia. Um trabalho insano que desconhecia os limites do sono e da fome. Em certos momentos, tomado por uma espécie de transe, parecia sentir a presença do autor perto de si. Queria ser vidente, pensava, para simplesmente perguntar-lhe, afinal Capitu traiu ou não traiu Bentinho? Mas o tal fantasma jamais se mostrara e, nem mesmo invisível, lhe aplacara a curiosidade em algum sussurro vindo de outras dimensões.
Nunca se viu tese de doutorado mais completa sobre um autor. Tornara-se seu quase íntimo, sabia mais detalhes da vida cotidiana de Machado de Assis do que de qualquer pessoa com quem convivesse. Sabia muito. Sabia quase tudo. Construíra hipóteses e mais hipóteses baseadas nos muitos documentos, alguns genuínos outros apócrifos, que conseguira recuperar. E não saíra do lugar. Tal como na madrugada angustiada da sua adolescência, não conseguia ainda hoje manifestar sua opinião com um grau satisfatório de certeza sobre a dúvida infernal que atormentara a vida de Bentinho e a sua.
Parou diante do farol vermelho para atravessar a avenida. Já estava quase chegando ao prédio onde morava. Sentia o corpo encharcado, o suor vindo do exercício e da emoção. Pagou caro por aquele pedaço de papel. Já havia comprado outros antes. Já se lhe tinham custado um automóvel, algumas jóias velhas que alguma das bisavós deixara, e as duas coleções que foram o legado de seu pai, uma de selos e a outra de canetas antigas. Não gostava daquilo, afinal. Vendera-as. Tinha se tornado muito conhecido no mundo subterrâneo da compra e venda de documentos antigos, a maioria produto de furtos a museus ou meras falsificações. Mas não se preocupava com isso de antemão. Surgia um documento, comprava-o. Se fosse falso, logo descobriria. E havia sempre a esperança de que fosse original. E a outra esperança, ainda maior, de que fosse a chave para desvendar o segredo de Capitu.
Foi por esse caminho que chegara ao envelope que trazia agora sob o paletó. Todas as referências pareciam garantir que se tratava de manuscrito genuíno. Uma carta, dirigida à Dona Carolina pouco antes de sua morte, na qual Machado declarava, a pedido da esposa querida e enferma, a verdade sobre a história de Capitu, Bentinho e Escobar. A tal carta fora escondida por décadas a pedido do próprio autor e de seus editores. Passou de mão em mão por familiares e colecionadores. E agora lá estava. Era sua. Saberia.
Foi difícil abrir a porta, pois a mão trêmula tinha dificuldade para compatibilizar chave e fechadura. Entrou em casa, percorreu o ambiente com o olhar, certificando-se de que estava mesmo sozinho. Puxou as cortinas, tirou o fone do gancho, não queria ser interrompido na sua leitura por qualquer ligação inoportuna. Ligou a lâmpada de leitura, ajeitou-se na poltrona, limpou os óculos. Abriu o envelope de papel pardo. Lá dentro, outro envelope, este cheio de vincos amarelados, como um rosto cujas rugas contam histórias e denunciam a idade. Numa caligrafia inexplicavelmente antiga, lia-se “a minha querida Dona Carolina”. O coração disparado, a boca seca, o espírito em êxtase: estava ali sua resposta. Desvendaria finalmente o segredo. Abriu com cuidado a correspondência, acariciando a carta como se tocasse as mãos que a escreveram. Abriu-a. Leu. Um movimento discreto nos lábios. Seria um sorriso, ou o prenúncio de um choro?
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Machado de Assis (1839-1908) publicou "Dom Casmurro" em 1899.
fonte da imagem:http://www.senado.gov.br/comunica/historia/machassis.htm
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