terça-feira, 31 de março de 2009

stop!

ia andando
distraída
leve e solta
olhando

ávida
ia sonhando
abria a boca
olhos e ouvidos

absorvida
em cor e canto
nem se deu conta

que num segundo
veio o trem
o raio
o infarto

e todo sonho
morto
desfeito
virou farrapo
sumiu no vento

sexta-feira, 27 de março de 2009

corpor(e)ificado


e se me pusesse aqui agora
diante de ti
nua
a vergonha que nos envolveria
seria minha ou tua?


este corpo sou eu!
trago nele as cicatrizes do tempo
as pegadas da história
a nostalgia dos filhos dentro...


quero-o assim
remendado e imperfeito
um corpo que espelha a alma:
aqui um erro, ali um defeito...

desnudar-me para o mundo!

mostrar, exibir, não esconder
cada ponto que desafia
cada gordura transgressora
cada mancha, cada estria!


apropriar-me dessa almacorpo
fazê-la viver
conceder-lhe até o último momento
a benção
o direito
de ser fonte inesgotável
de prazer,
de arrebatamento...



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quarta-feira, 25 de março de 2009

[depois do passo, o nada...]


depois do passo, o nada
e não há outra mão
a responder à busca
daquela mão desesperada

delicado fio de seda
sustenta a queda
lenta
do desfeito corpo
no vazio do espaço
morto

num último alento
tenta sorver o ar da vida
mas o pranto cálido desafoga o peito
e em água de mar e lágrima
lava-se a alma da dor incontida

depois do passo, o nada
depois do nada, o grito
mais além só o silêncio
e no fim de tudo
o infinito
'

segunda-feira, 23 de março de 2009

cadeia


estranha força que me mantém
atada a ti e ao tempo
que me restringe o movimento
torna-me a voz enfraquecida...

como o sopro de um vampiro
suga-me a cor e a vida
torna-me voluntariamente cativa
do amor algoz que nunca tive...

o passo quer dar-se
mas os pés prendem
âncoras, ao poço infinito
me lançam
repetidamente...

olhos abertos
não vejo escuro nem claro
e já não sei se tenho as formas
que me deixaste marcadas...

perco o rumo, perco a hora
perco-me toda no mundo...

vinda de um sonho roubado
pelo amanhecer inesperado
sou, apenas,
sem futuro
sem predicativo
mera sobra de um desejo intransitivo...


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imagem: luz e sombra, por marcia szajnbok

sexta-feira, 20 de março de 2009

Des-Econtro

Apertou firme a moeda na palma da mão.

- Cara, eu vou. Coroa, não vou.

A moeda e a memória agitadas em reviravoltas sincrônicas. Numa seqüência de imagens em apresentação pós-moderna, via-se, via-o, jovens, confusos, apaixonados, ciumentos, beijos, brigas, declarações de amor e de ódio... Quando, finalmente, a moeda pousou na palma da mão, fechou os olhos, respirou fundo, e conferiu: cara.
Pronto, estava decidido, iria ao encontro. Com o coração disparado, deu início ao tormentoso processo de escolher o que vestir, o que calçar, como arranjar o cabelo. No espelho, achou bonito o rosto maduro, a pele cuidada, quase sem rugas. O que destoava eram os olhos. Transbordavam ansiedade, aqueles olhos de menina. Pôs no bolso a moeda-decisão, e saiu:

- Seja o que deus quiser!

***

Chegou cedo, mas fez questão de se demorar o suficiente para atrasar dez minutos. Do outro lado da rua, podia vê-lo sentado numa das mesinhas externas do café. Pensou com seus botões que ele estava mais gordo, mais grisalho e um pouco mais careca do que da última vez em que se haviam visto. Parecia também mais sereno. Onde teria ido parar toda aquela energia que ele esbanjava, tanto ao amar quanto ao agredir? Esvaiu-se no tempo.

Intrigada, se perguntava o que ele havia de querer agora, depois de tudo. Anos e anos de convívio, filhos, risos, netos, dores, o longo e trabalhoso processo de construir e desconstruir um casamento. Depois, nada. Anos de silêncio. E agora, de algum ponto remoto do passado, ele ressurgia, espectral, chamando-a para dizer... o quê?

Lá estava ele com seu jornal, como sempre. Pedira uma Coca-cola. Com gelo e sem limão, certamente. Continua bebendo refrigerantes, constatou. Tentava nomear a estranha sensação que ia lhe invadindo. Parecia vir da terra, subir pelas pernas, um amolecimento, uma ternura nostálgica. Tinha ímpetos de atravessar a rua e lhe acarinhar o rosto, dizer a ele com uma doçura perdida no passado o quanto se importava, o quanto gostaria de vê-lo bem, tratando de si, cuidando da saúde, tomando suco natural ou água. O que ele responderia? “Oh, querida, obrigado”!? Não. Definitivamente não. Seria mais provável um áspero “o que é que você tem com isso?” ou “você sempre acha que sabe o que é melhor para os outros, não é?”, seguido daquele suspiro que ficava entre o desprezo e o tédio, que deflagrava nela uma vontade quase incontrolável de morrer. Ou de matá-lo.

Esse sentimento misturado, esse gostar com laivos amargos de desgostar, era velho conhecido. Quando surgira? Não era capaz de dizer. Não havia um ponto, um trauma. Foi o tempo, o passar dos dias, as pequenas desatenções, os mal-entendidos do cotidiano, as grosserias, a falta de paciência. Não souberam encontrar essa tolerância recíproca que é o amor posto no tempo. Saberiam agora? Evidentemente, poderia sentar a seu lado e tomar sua água, ignorando toda a diferença entre ambos materializada ali naquela escolha prosaica da bebida a ser consumida. Seria um esforço. Valeria à pena?

O velho ressentimento ia subindo pela garganta. Lutara contra ele anos a fio. Tinha a convicção íntima de que esse ressentimento é que lhe fizera adoecer logo após o divórcio. Senti-lo de novo, surpreendentemente forte e vivo dentro do peito, lançou-a numa nuvem cinza de tristeza. O mundo ao redor em pleno verão colorido, e ela esfumaçada, nublada e melancólica como uma manhã de outono. Reviveu, com nitidez, aquela capacidade longamente desenvolvida durante o casamento de despertar, cada um, o que de pior havia no outro. Os anjos se perderam. Mantiveram-se unidos pelos sagrados laços de seus demônios. Culpara-o tantas vezes! Mas agora, vendo-o assim, a uma distância de metros, ele parecia apenas um homem maduro, sério e solitário. Era preciso manter essa distância, sentiu. Em algum ponto da aproximação, o demônio despertaria. Sentia-o já inquieto no fundo da alma. E não gostava disso. Não gostava nem um pouco disso.

Sentiu-se abruptamente envelhecida, doíam-lhe as pernas, as costas. O olhar pousou, por acaso, na mão esquerda e encontrou-a cheia de pintas, as veias aparentes e sem aliança. Viu-se toda naquela mão, em pleno processo de deixar o tempo tecer seu trabalho de tempo, e envolvida por esse limite em que a liberdade e a solidão se tocam e se confundem.

A outra mão encontrou no bolso a moeda. Sem hesitar, jogou-a na caixinha do cego que, sentado na calçada, tocava uma flauta desafinada. Ao invés de atravessar a rua, seguiu em frente, rumo à praia. Chegando à areia, livrou-se dos sapatos. Os passos, de início lentos, foram se transformando num quase correr, em pulos, numa estranha dança solitária à beira do mar. Queria, quase precisava, deixar a vida entrar, pelos pés que tocavam a água, pela pele do rosto, que se oferecia ao vento.
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quinta-feira, 19 de março de 2009

la première leçon

j´ai parti
je te dis
ça ne vas pas
tu me réponds

je pense
il veut que je reste!

mais ce n’est pas comme ça...

la grammaire, elle est bien plus importante
que moi
pour toi

et tu t’en vas…

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quarta-feira, 18 de março de 2009

indriso


tanta nuvem cinza entrava pela janela!

sentimento revoltado

dor e raiva
carinho, inveja
tudo um pouco misturado

tingiam mais ainda
a atmosfera da vida
com aquele descolorido cinza...


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imagem: céu de são paulo, marcia szajnbok

terça-feira, 17 de março de 2009

[houve o tempo de rimar...]

houve o tempo de rimar
amor com flor
depois, um momento
de fazer soar a dor

de castigo,
num silêncio
foi preciso o verso pôr

para que
branco e manco
só sobrasse
- sob as águas,
pois não nada -
a rima pura:

amor com amor,
(que nunca se paga)
- verso com verso
se captura...
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segunda-feira, 16 de março de 2009

G(h)OST(o)S


nas paredes impregnadas
o som dos gritos
a aspereza das palavras
a sombra dos gestos indelicados

nos cantos, nos vãos, nos batentes
o cheiro acre que da ira se desprende

na desordem das coisas foram se perdendo
rascunhos de afeto
tentativas de carinho
desencontro de desejos

numa caixa mal cuidada
em meio a papéis velhos e inúteis recibos
pedaços de um amor menosprezado
que morreu recém-nascido

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sexta-feira, 13 de março de 2009

amigos que escrevem: giselle natsu sato

Te espero...Vem!
O mel do cálice
escorre em desafio

Prove o sabor da conquista
desfrute a doçura sem limites
da entrega submissa. Premissa!

Quebre as resistências fugidias
Conduzindo os caminhos
Senhor do básico instinto

Beije a boca sorvendo a alma
Em pequenos goles de prazer
desnude o corpo e segredos

Nunca revelados.
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Giselle Natsu Sato vive no Rio de Janeiro, que continua lindo...
Outros textos podem ser lidos em http://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/

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quinta-feira, 12 de março de 2009

papillon

desatenta
caminhava com o vento...

no meio de tanta flor,
a borboleta amarela
foi voar ao seu redor...

nesse mágico momento,
convenceu-se da própria bondade
por dentro...




fonte da imagem:http://www.animalpicturesarchive.com/ArchHAN01/1098623572.jpg

quarta-feira, 11 de março de 2009

alcova

no meio do cabelo desfeito
segredos embaraçados
aos olhares recolhidos
e, debaixo da coberta,
escondidos
vestígios de um buquê de sonhos
com pétalas de amor perfeito
perfumavam o quarto e a vida...

o tempo parado no tempo
a penumbra criando contornos
e dos corpos unidos fluía
uma canção adormecida

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segunda-feira, 9 de março de 2009

redoma



verdeazuladas
águas claras e límpidas
moluscos e algas
bolhas simétricas
corais
peixes, crustáceos
e pedras plácidas...

num velho baú
naufragado
pequenos tesouros
porcelanas, moedas,
peças de antiquário...

tudo lindo
transparente
tanta calma nos ruídos aquáticos...

seria o paraíso
não fosse apenas um aquário...
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sexta-feira, 6 de março de 2009

Diálogos Poéticos: Augusto com Almada


A DANÇA DA PSIQUE
Augusto dos Anjos (1884 - 1914)

A dança dos encéfalos acesos
Começa. A carne é fogo, A alma arde, A espaços
As cabeças, as mãos, os pés e os braços
Tombam, cedendo à ação de ignotos pesos!

É então que a vaga dos instintos presos
-- Mãe de esterilidades e cansaços --
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos.

Subitamente a cerebral coréia
Pára. O cosmos sintético da Idéia
Surge. Emoções extraordinárias sinto.

Arranco do meu crânio as nebulosas
E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto!


A SOMBRA SOU EU
Almada Negreiros (1893 – 1970)

A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo a luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei do que serias
e de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e não que me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá,
sempre às portas de mim!

quarta-feira, 4 de março de 2009

[depois de muitas palavras...]




depois de muitas palavras
silêncio
sem fala
mutismo

há ecos que ricocheteiam das paredes
aos ouvidos
há vozes
frases, pragas, profecias, preces

bate um vento:
sons levantam
que estavam esquecidos
poeira velha
sob tapetes adormecidos

bate outro vento:
eles espalham
nuvem de ruídos
interferência
estática
corda partida
acordes invertidos

é preciso água
chuva-pranto que tudo lave
que leve embora
até o último fiapo
da letra desconjuntada

para que a alma fique limpa
leve
finalmente
no silêncio
aconchegada


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imagem: Andromeda, Salvador Dali

terça-feira, 3 de março de 2009

soneto

quem disse que não quero ter saudade?
quem falou que senti-la é tão ruim?
é com ela que consigo ter presente
quem, ausente, quero ter perto de mim

é a saudade que preenche aquela falta
que faz doer um vazio dentro do peito
é com ela que o passado volta agora
repetindo um carinho outrora feito

não me tirem de mim minha saudade
que ela é minha companhia inseparável
é o que me alimenta o pensamento

já não importa o tempo ou a idade
hei de guardá-la bem no cofre inviolável
do meu mais secreto sentimento

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segunda-feira, 2 de março de 2009

geométrica


quadrado inclinado
abre o ângulo
losango

tudo gira
e pelo avesso
o que era fim
vira começo
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imagem: Quase Quadrado, uma brincadeira gráfica que fiz no powerpoint.