sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

variando sobre velhos temas

no escuro da insônia
todos os sonhos
são fardos
*

em terra de surdo
quem tem um grito
é mudo
*

devagar se vai andando
perto ou longe
divagando
*

quem tudo-quer
tem de ser virar
com meio-ter
*

de grão em grão
enche-se a paciência
mas a barriga não
*

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

[há um mar sempre mais fundo...]


há um mar sempre mais fundo

infinito
inunda
como não houvesse bóia
salvação ou ilha
nunca

como predeterminado fosse
destino e morte
mas entre um e outro
ainda se abrisse
a possibilidade
de um recorte

um parêntese do tempo
num espaço inexistente
e nessa brevidade
de toda dimensão apartada
se encontrasse
alguma felicidade
mais consistente
que a ilusão ou o nada

'
imagem: Tempestade, Ilka Passos

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

risco

no papel
na vida
há sempre um risco

seja por arte ou rabisco
em tudo que faço
insisto
nessa parte
desmedida

nessa sede
intransigente
nessa fome
antropofágica

que quer sempre um
que quer sempre mais
e mais
e mais
e



`

imagem: Knives, Andy Wahrol

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

pecados mútuos

seria possível perdoar-te
a ira
a soberba
a gula infinda
se me pudesses aceitar
assim, plena da luxúria
que é o que me resta ainda
de prova, de vida
de laço, de ponte
tênue movimento
que no corpo enseja
o último ponto de calor
que a alma inveja
muito, muito mais do que a beleza
que a tua crônica avareza,
glorifica, idealiza, endeusa...

seria possível perdoarmo-nos os pecados
se o que de nós restasse humano
se reconhecer pudesse
e em seu tamanho mínimo coubesse
nosso corpo, nosso espírito e vontade

mas diante de uma tal necessidade
de engendrar trabalho e esforço
nosso amor morreu de sede
à beira do regato,
preguiçoso

`

domingo, 22 de fevereiro de 2009

amigos que escrevem: volmar camargo junior




O FIO DO TEMPO

O tempo nasceu quando
o tecido infinito de estrelas
começou uma vez a ser feito

(Nasceu só para tecê-lo)

Por muito querer conhecê-las
distraiu-se até perder o jeito
e o tecido acabou desmanchando

(O Universo virou um novelo).




Volmar Camargo Junior é gaúcho, reside na linda cidade de Canela (RS) e, além de poeta é ótimo prosista e contador de causos. Outras poesias podem ser lidas em: http://restodecafefrio.blogspot.com/

`
imagem: emaranhados, de antonio bokel
fonte da imagem:http://www.radar55.com/Obras/emaranhadosampliada-0001.jpg

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

singular plural

eu me procuro
tu me encontras
ele se confunde
nós nos queremos
vós vos escondeis
eles nos aprisionam

eu te liberto
tu me resgatas
ele se contorce
nós nos abraçamos
vós vos entendeis
eles nos invejam

eu te amo
tu me amas
nós nos amamos
o verbo basta
o sujeito encontra
e de outros objetos
já não precisamos
'

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

[tanto passado persiste...]


tanto passado persiste
em rostos e vozes
e cheiros e toques
cenas, lugares, canções...

tanto do tempo que não quer passar
tanto de gente que já foi ficando
porque passa o tempo fora
mas dentro o relógio vai parando
num minuto
em qualquer dia
a qualquer hora
sem aviso
perde a pilha
perde a corda...

dorme, dorme, menininha
que o monstro que te acorda
era vidro e se quebrou...

dorme, dorme,
canta lá, minha avozinha,
que o amor que tu me tinhas
era tanto
e acabou...

'
imagem: fachada do antigo Instituto de Educação Caetano de Campos

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Pensando na Vida: Phelps, Paula e outras esquisitices

O tempo passa, as teorias acerca do humano proliferam, ciência e filosofia discutem tão mais arduamente quanto mais marketing e patrocínios possa haver em jogo. Mas, no final, sempre há algo que escapa. Um amigo me diz sempre, “nada do que é humano me surpreende”. Ele tem razão. Duas notícias que pulularam nas páginas jornalísticas nas últimas semanas podem bem ilustrar isso.
Primeiro, Michael Phelps, o super-hiper-mega campeão olímpico, símbolo carimbado em todas as bandeiras da geração-saúde, é flagrado fumando maconha. Ohhhh... Mácula imperdoável para a sagrada família americana, que sempre teima em empurrar o pó para baixo dos tapetes. Ora, o moço estava numa festa, fumando cannabis num narguile, como tantos outros o fazem cotidianamente, tanto lá como cá. Se ele fosse flagrado com um copo de whisky, escocês evidentemente, será que as reações seriam as mesmas? Será que os patrocinadores, que agora se retiram em nome de uma não-vinculação de sua marca às drogas, teriam a mesma atitude? Ou, mais provável, o fato seria rapidamente apropriado pela mídia e, ao invés de virar escândalo, a tal fotografia teria se transformado em peça publicitária de qualquer Johnnie Walker ou Jack Daniel’s.
Não se trata, evidentemente, de fazer a apologia da maconha. O meio científico não cansa de desfiar todos os problemas físicos e psíquicos que decorrem de seu uso e de sua dependência. O problema dessa celeuma está, mais uma vez, na hipocrisia de depositar o mal no outro, no que está longe, no que mora fora da própria casa ou do próprio corpo. Fumar maconha faz mal à saúde, isso é um fato. Mas fumar nicotina, também. Consumir álcool em excesso, também. Comer gordura saturada, também. A questão é que toda a mídia que transformou o flagrante do Phelps em notícia não está nem aí pra saúde dele, ou de quem quer que seja. A preocupação é com a imagem, com as marcas, com os milhões de dólares investidos em propaganda. Phelps fuma maconha? Azar dele! E azar também de toda a horda de exploradores que confunde gente com objeto de consumo, e que gastou um monte de dinheiro comprando algo que nunca está, de fato, a venda: uma pessoa!
A outra notícia que ocupou o falatório nacional é a da Paula, a brasileira agredida por neonazistas na Suíça. Agora – bomba! bomba! – estão dizendo que a moça não estava grávida, e há mesmo quem diga que, como as letras do tal partido xenófobo estão muito simetricamente desenhadas no seu corpo, há um indício de auto-mutilação. Pode ser, pode não ser. O que espanta, é o tanto de palpites que se dizem e se escrevem. E, numa história como essa, é fácil se perder entre o limite do público e do privado. Se houve mesmo um ataque, trata-se de um caso de polícia e, claro, de relações exteriores entre o Brasil e a Suíça. Mas, se não houve, deixa de existir um fato diplomático. Retorna-se ao sempre surpreendente mundo das vicissitudes humanas. Já ouvi alguém perguntar: mas porque uma moça culta, advogada, faria uma barbaridade dessas com o próprio corpo? Engraçado que, nesta altura da evolução (?) da humanidade, alguém ainda creia que inteligência e cultura sejam antídotos contra as estranhezas das pulsões que nos habitam. Engraçado também, que ninguém faça a mesma pergunta quando uma jovem qualquer se dispõe a injetar não sei quantos litros de silicone no peito, como se o fato de estar em concordância com a moda tornasse o ato menos bárbaro.
Sim, meu amigo tem razão. Nada do que é humano deveria nos surpreender. Porque histórias como essa só vem confirmar, dia após dia, que não há modelo - filosófico, psicológico, neurobiológico, genético, esotérico – que dê conta das complexidades absolutamente únicas e particulares daquilo que é a verdadeira assinatura de cada um: sua constituição subjetiva.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

[sentimentos como cores...]


sentimentos como cores
continuum sem limite
sem borda, sem moldura
nada é claro
do branco ao preto, tanto cinza!
e no fim de cada cor
um novo tom, raro

não há muro separando
alegria da tristeza
nem ira da quietude
da melancolia à felicidade
um faixa imprecisa
um borrão ou só rabiscos
pop art colorida
formatos desconexos
composições psicodélicas
tingem-me
sou tela
lá por dentro toda a tinta misturada
tudo ao mesmo tempo
uma instalação inusitada
o caos
vivo

`

imagem: Yellow, Red, Blue - W.Kandinsky

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

[porque o amor sonhado...]


porque o amor sonhado
é mais verdadeiro
do que o ódio que atormenta o tempo inteiro

porque é mais sólida
a vida imaginada
do que o desencontro que perpassa a caminhada

porque o tempo-vento dispersa
a poeira-sofrimento
que torna turva a realidade

nos confins do firmamento o que resta
é o brilho estelar
de um encontro de verdade

'

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

pêndulo

sempre lá dentro
o movimento-trapezista

oscila

ora forte
vive
vibra

ora cala
na quietude-morte
vacila

na corda bamba
a alma estanca
indecisa

hesita

entre o que deseja
e o que aniquila
`

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

trópicos


há vida no corpo
há vida lá fora
chove gostoso
espanta o calor
uma flor que desponta
dá cor a uma sombra
uma pele que toca
é fruta bem doce
o molhado da terra
o molhado da boca
é prazer de estar vivo
é fome de amor

'

imagem: Isto é São Paulo (1): AAAOC, por Marcia Szajnbok

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

diálogos poéticos: Pagú com Anaïs


UM PEIXE
Patrícia Galvão (09-06-1910, São João da Boa Vista, SP - 12-12-1962, Santos, SP)

Um pedaço de trapo que fosse
Atirado numa estrada
Em que todos pisam
Um pouco de brisa
Uma gota de chuva
Uma lágrima
Um pedaço de livro
Uma letra ou um número
Um nada, pelo menos
Desesperadamente nada.


RISCO*
Anaïs Nin(21-2-1903, Neuilly-sur-Seine, França - 14-1-1977, Los Angeles, EUA)

E então chegou o dia
em que o risco
de em botão
permanecer
ainda mais doía
do que o risco
que levaria
a florescer

*Tradução livre, por Marcia Szajnbok
Risk: And then the day came,/when the risk/to remain tight/in a bud/was more painful/than the risk/it took/to Blossom.

fonte das imagens:


quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

indriso: de eva para todas nós


entre o certo e o errado
onde por o que desejo?
não acredito em pecado

nem o seria um beijo
ou um abraço apertado
saber do amor é tudo que almejo

e se é mesmo que deus existe

ele não há de me querer triste!

'

Imagem: O Pecado Original e a Expulsão do Paraíso, Michelangelo

Fonte da Imagem:http://www.saber.cultural.nom.br/template/especiais/fotos/CapelaSistinaTetoPecadoOrig.jpg

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

[eram tantos...]


eram tantos os sonhos
variados
coloridos
miçangas espalhadas
fios dourados retorcidos

eram tantos, tantos...
desbotaram com o tempo...

contas perdidas
bordado esfiapado
e nas noites indormidas
algumas raras vezes
no corpo mal contido
um suspiro
era abafado

`


segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

[um deserto...]




um deserto
muita areia
calor seca

mas decerto
lá no meio
algo desperta

em plena desesperança
uma semente
é descoberta

na paisagem desolada
o vento sopra
o ar refresca

enquanto a morte não chega
a vida insiste
teimosia

no meio do cotidiano triste
algo resiste:
é alegria
'

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Poetrix

PHAGO
o que o corpo come
quando a alma
é que tem fome?


PHRENESIS
é tão pouco
o que separa
o são do louco


FALLENS
tanto riso sem alegria
como dança sem música
como amava se não sabia?


SUPPLEO
no lugar do abraço
o vazio da vontade:
saudade