ouve a voz do vento a cantar contente
pontua a metonímia dos dias
inventa rimas pr'o tempo virar poesia
sê feliz no ano novo, diariamente!
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"Minha liberdade é escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo." Clarice Lispector
era bonita a menina
e a vida toda clara,
reluzente em bordados de suave cor-de-rosa,
recendia a filhoses,
bolinhos de chuva e brigadeiros
e a cada dia seguia-se outro
no passar delicado e descontínuo
de um tempo quase rotineiro
foram sutis as mudanças
e vieram tão silenciosas
que marcaram faces e flores
com quase imperceptíveis sinais:
umas rugas, menos brilho
aqui e lá um esmaecimento de cores
uns sonhos a menos, nem sempre vívidos
umas lembranças a mais
porém, em algum ponto do ser,
entre a pele e as entranhas
o agora e o antes se fundiam
num pulsar sépia de desejos
e, para além do corpo, uns beijos
carícias, companhia e cálida intimidade
produziam ondas de vida
onde a morte já era tamanha
e, em algum ponto do cosmo,
entre a luz pálida e o brilho de estrelas
as memórias embaralhadas
reconstruíram o caleidoscópio dos dias:
puseram pontos, pincelaram vírgulas
recontaram a movediça métrica,
revestindo o cotidiano insosso
com retalhos de pura poesia
imagem: Danceuses en Bleu, Edgar Degas
melhor teria sido ir em frente
vida afora, desatenta,
na placidez azul e melancólica
da quase repetição cotidiana
sem tropeço, sem soluço, sem surpresa
(é que nunca se sabe ao certo
como virá a ferida)
quando o sangue veio em jorro
o universo contorceu-se
o mundo gritou em cólicas
imerso no inesperado vermelho
o corpo, a estrada, as certezas
(é que nunca se ouve direito
a antiga voz que, sussurrando, grita)