ouve a voz do vento a cantar contente
pontua a metonímia dos dias
inventa rimas pr'o tempo virar poesia
sê feliz no ano novo, diariamente!
`
"Minha liberdade é escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo." Clarice Lispector
era bonita a menina
e a vida toda clara,
reluzente em bordados de suave cor-de-rosa,
recendia a filhoses,
bolinhos de chuva e brigadeiros
e a cada dia seguia-se outro
no passar delicado e descontínuo
de um tempo quase rotineiro
foram sutis as mudanças
e vieram tão silenciosas
que marcaram faces e flores
com quase imperceptíveis sinais:
umas rugas, menos brilho
aqui e lá um esmaecimento de cores
uns sonhos a menos, nem sempre vívidos
umas lembranças a mais
porém, em algum ponto do ser,
entre a pele e as entranhas
o agora e o antes se fundiam
num pulsar sépia de desejos
e, para além do corpo, uns beijos
carícias, companhia e cálida intimidade
produziam ondas de vida
onde a morte já era tamanha
e, em algum ponto do cosmo,
entre a luz pálida e o brilho de estrelas
as memórias embaralhadas
reconstruíram o caleidoscópio dos dias:
puseram pontos, pincelaram vírgulas
recontaram a movediça métrica,
revestindo o cotidiano insosso
com retalhos de pura poesia
imagem: Danceuses en Bleu, Edgar Degas
melhor teria sido ir em frente
vida afora, desatenta,
na placidez azul e melancólica
da quase repetição cotidiana
sem tropeço, sem soluço, sem surpresa
(é que nunca se sabe ao certo
como virá a ferida)
quando o sangue veio em jorro
o universo contorceu-se
o mundo gritou em cólicas
imerso no inesperado vermelho
o corpo, a estrada, as certezas
(é que nunca se ouve direito
a antiga voz que, sussurrando, grita)
Você sabe o que é o Movimento Mais Feliz? Pois bem, até ontem eu também não sabia. Trata-se de um “movimento apartidário, não governamental e não assistencialista que se sustenta em cinco pilares: conscientizar a população, mobilizar a sociedade, estimular a participação, capacitar multiplicadores e motivar as pessoas a se doarem. A defesa da inclusão na Constituição da “busca da felicidade” como norteadora dos direitos essenciais a todos os brasileiros, batizada de PEC, também é iniciativa do Movimento “.
Estranho, pensei comigo, que no século XXI, após Marx, Freud, nazismo, Vietnã, queda do muro de Berlin, Talibã e tanto mais, que alguém ainda acredite que encontrar a felicidade seja algo simples assim: inclua-se na Constituição e pronto! – ato contínuo, estaremos todos felizes.
Nesse espírito, cheguei ao Auditório Rui Barbosa no Campus do Mackenzie em São Paulo, para assistir a um concerto beneficente. O que me moveu até lá, devo confessar, não foi a benemerência, mas o fato de que seria uma oportunidade de ver de perto o Maestro João Carlos Martins, que regia a orquestra.
O que vi? Antes de tudo, um auditório lotado. Senhoras e senhores vestidos como para um concerto de antigamente, jovens em jeans e camisetas, crianças, uma mulher grávida comendo pipoca, um adolescente estilo emo que perguntava à mãe o que iria ouvir. Comecei a gostar. Enquanto aguardávamos a abertura das portas, passou um grupo grande de jovens negros e mal vestidos. Em outra situação, muitos ali segurariam preconceituosamente seus colares e carteiras, mas não ontem. Ontem, diante da entrada daquele auditório, havia uma amostra efetivamente democrática do Brasil.
O que se seguiu foi um espetáculo musical impossível de relatar. Um programa popular, diriam os mais habituados às salas eruditas. Pouco importa. Foi um programa delicioso, que passeou de Mozart a Ennio Morricone, que incluiu Fafá de Belém em dueto com um jovem tenor maravilhoso, Jean Willian, cantando Adoniran Barbosa, que sacudiu o Allegro com brio da Quinta Sinfonia de Beethoven com o retumbar de percussionistas da Vai-Vai e que encerrou a noite com chave de ouro, com a execução do Hino Nacional Brasileiro num arranjo de tirar o fôlego, iniciado pelo piano solo de João Carlos Martins que, de repente, ágil como um menino, salta da banqueta para se pôr como regente da orquestra. Um show!
Difícil descrever o impacto de ver aquele senhor, do alto dos seus quase setenta anos, falando de sonhos e de mudanças de vida, depois do revés que teria derrotado muitos outros, quase tirando dele o que tem de mais precioso, as mãos. Um senhor ao meu lado dizia: “um exemplo de superação”. Penso que é mais. Penso que é um exemplo do que se pode chamar de felicidade: não se trata de um estado, mas de um movimento, de uma busca, de uma construção.
O que vi ontem, nesse espetáculo, foi uma realização in loco do Movimento Mais Feliz. Saímos todos de lá, certamente, mais felizes do que entramos. Ouvindo o nosso Hino, tocado daquela maneira brilhante e apaixonada, me senti muito mais brasileira, impregnada mesmo dessa brasilidade maravilhosa, que nos empurra a persistir, a seguir em frente, a tentar de novo, a construir mais um pouco, sempre. Me senti feliz por estar ali, rodeada de um Brasil que é muito mais verdadeiro, digno e valoroso do que nos fazem crer as campanhas eleitorais mixas a que temos sido, todos, diariamente submetidos.
Obrigada, Movimento Mais Feliz. Obrigada, Maestro. Sigamos!
`