sábado, 22 de dezembro de 2012

NASCIMENTO DO TEMPO



pedacinhos de papel colorido
dobrados, redobrados, revolvidos
faço origami das palavras
procuro entre as letras o não sentido
um inesperado, uma surpresa
que torne o dia particularmente único
destacável dos demais, fecundo
digno de receber seu nome: dia!

período composto de incontáveis instantes
que teimamos por numerar em horas
como se ao batizar o tempo
pudéssemos pôr a vida em cadência,
em ritmo de valsa ou marcapasso,
qualquer coisa que seja contada e contida
pra que a imensidão do eterno  depois
não nos assuste tanto.

ah, tempo futuro, te quero inteiro!
sem a demarcação das datas, sem nada!
quero a vida como um tempo nu, recém nascido
um tempo virgem de saudades, de lembranças
folha branca a esperar por marcas
que alma escreva, assim, solta e franca...


fonte da imagem: http://blog.suri-emu.co.jp/?p=128

sábado, 1 de dezembro de 2012

NOITE



há o limite da pele
a separar o que perturba
do ritmo silencioso dos órgãos

há a pele e os poros
que subvertem o contorno

há as bordas, os furos
arestas descontínuas
fronteiras

há eu
há não
há nada

nas entrelinhas sibila o vento
sussurram antigas vozes
ilumina o sonho o luar da madrugada

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

ouve vozes?


a loucura feita de silêncio
o muro, o fosso
o monstro, o dragão de sangue espesso

o risco de engolir todas as sílabas
e descosturar a alma pelo avesso

o risco, a oportunidade, a chance
de dizer ao contrário o desconexo
a letra perdida
entre a verdade e o soluço

cala a boca, calabouço!
que o teu eco é obscuro
é nada
é anti-vida
é osso

é nunca mais para sempre
é carne de pescoço

vira de ponta cabeça o abismo
escancara a boca e o grito
mostra feroz os dentes

faz da tua voz
a ponte sem pilares
que te leva ao infinito

sábado, 13 de outubro de 2012

BANANA PAULISTANA



delira a minh'alma paulistana 
entre as luzes e as gentes 
entre as sombras retilíneas
o som ininterrupto
da tecnolira estridente

somos todos tantas ilhas!

cercados de anonimato
despencamos em tola vertigem
dos andaimes viadutos
estaiadas pontes magras 
parapeitos absurdos

sinto falta do mar!
sinto falta de ar de vento e de praia!

eis que em plena concretude
surge inesperada bananeira
a desafiar a snob cosmopolita
toda toda verdeamarela 
tão plena de tropicalidade

contradita e do avesso
deixo-me levitar
vou sem peso
diluída e transparente
sobrevoo a amada cidade

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

FOMES



o dia é uma laranja
cheia de gomos
sumarenta
doce e ácida a se oferecer aos dentes
e desafiar a língua 
a insuspeitos paladares

o dia é uma laranja
que se abre, colorida,
e me chama, irresistível:
- experimenta!

o dia é uma laranja
que existe tão somente
para matar-me a sede
e deliciar-me a boca

quero-a toda, laranja-dia, 
mastigá-la fibra a fibra
sorvê-la até a última gota 
não deixar nada para trás
- sementes, casca, nada!

o dia é uma laranja madura e sedutora
e a noite virá em paz
se puder comê-la inteira
completamente
sem desperdício

o dia é uma laranja
que me relembra 
que estou viva
e que viver é o meu vício!

domingo, 9 de setembro de 2012

PULSA-ÇÃO




a vida corre pelos vãos do corpo
enfrenta mutações e barreiras
vira a melancolia pelo avesso
se impõe, vitoriosa companheira

a vida me toma pela mão e corremos
(crianças descobrindo o mundo)
pelas veias e artérias
como em praias ou falésias

mergulhada em risos, leve
sigo solta no caminho que invento
e a vida lá de dentro me expande
tanto, que já nem sei onde é o limite
entre meu breve corpo e o vento

sou toda assim, água salgada
e o mar de mim transborda
 azul e livre

sou toda assim, vida incorporada
energia sem alma
só células e alegria
mais nada

Imagem: Antony Gormley - Still Beeing (Corpos Presentes). CCBB - Rio de Janeiro - agosto 2012

domingo, 12 de agosto de 2012

OVO



abro a caixa e olho os ovos
perplexa, encontro o mutante:
em meio às formas perfeitas,
o ovo assimétrico tem arestas
pontas, espículas, cicatrizes

o ovo que não é oval me desafia
interpela a ordenação calma da caixa
e a minha

pelo simples fato de existir
aquele ovo me paralisa
me provoca
e, por fim, desperta em mim
algo disforme
inclassificável e extemporâneo

tomada de movimentos insuspeitos,
renasço, eu-ave de asas frágeis,
eclodo e voo
deixo para trás a casca e o mundo
observo, lá de cima e sorrindo,
a vida sem cores e muda
anterior ao encontro
do inesperado ovo

domingo, 5 de agosto de 2012

A PONTE




a ponte é construída de sutilezas

e mesmo assim, indestrutível
é longa, a ponte
atravessa a cidade, vai por colinas
segue em frente pelas florestas
e flutua imponderável sobre os oceanos

a ponte sai de mim
e vai
desenhando curvas e arabescos
deixando um rastro de sereno cinza
refletindo sóis, luas, crepúsculos
manhãs chorosas, tardes infindas

a ponte é aquarela
de traços leves e doces cores
sai de mim e vai
sem ter retorno
sem pra onde

apenas vai:
ponte


Imagem: Ponte Giverny, Claude Monet

sexta-feira, 13 de julho de 2012

PROUSTIANA




tanto por dizer
e não encontro as rimas

não acerto as assonâncias
soam sempre imperfeitas
minhas sinistras harmonias

estou prestes a desvendar o mistério maior:
o que torna humano os humanos?

mas, desprovida de palavras,
escorre-me por entre os dedos
essa vã sabedoria

como não sei dos sons
meu achado se desfaz
mera sombra
intuição
voo fugaz de borboleta transparente

ah, bem queria capturar o instante
cercá-lo de vidros
reter o tempo em redomas
trocá-las de ordem
inverter, embaralhar os dias
desfazer lembranças em sonhos
tecer de ontem, esperanças...

talvez assim recuperasse
algum gesto, um olhar antigo
uma canção, o cheiro de bolinhos
o som do mar da minha infância



sábado, 2 de junho de 2012

LUA



















viver no mundo da lua
sem peso, sem som, sem dias
viver livre como se cada vida
fosse nada mais que uma rua
sem começo, sem fim, sem esquinas
viver apenas o instante
a reta ou a curva que os passos
traçam, aleatórios, adiante

viver no mundo da lua
sem gravidade, sem quedas
soltar o corpo e o riso
lunaticamente liberto
esparso como pó
pelo universo

segunda-feira, 28 de maio de 2012

ZERO


estreito
a luz é pouca
há neblina
o som tão vago
sem sentido
a voz mais rouca

vertigem, vertigem
abismo infinito
do universo do avesso
ecoa o grito

tudo escuro
muito escuro
sem lado, sem cima, sem baixo
sem antes
nenhum futuro
tempo estático

agora apenas
sempre o mesmo
sem destino
voa a esmo
talvez corpo
talvez pouco
tudo morto

domingo, 15 de abril de 2012

ESPELHO


tincas rachaduras                                                                                                   
cicatrizes
umas fendas
ou talvez apenas
marcas de tempo
sinais de passagem
escoamento
da vida
sempre
absoluta
totalmente desprovida de sentido



domingo, 25 de março de 2012

SECA


algo dentro liquifica
escorre na parede do corpo
umidade chama hera
cria mofo
infiltra muda

água iridescente
e salgada
flui da pele
cai dos olhos
encharca a alma despovoada

fluido vivo
sangue fértil
a terra morta desnuda
há tanto tempo devastada

em pleno líquen, flora
cercada de sombra
ninféa antiga
meio disforme
já desbotada

avesso da vida

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

TOQUES

deviam ser sempre leves os toques
asa de borboleta
papel de seda recortado
bolhas de sabão

leves e semi-transparentes
translúcidos em tons pastel
suaves e mansos
espuma na areia

deviam ser ternos e calmos
e longos e quentes
e doces e tantos...

deviam vir musicados os toques
dedilhado em síncopas
vago piano

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

NIGHTMARE



um pé, depois o outro

eles seguem
cegos que são
às armadilhas do percurso

um pé, depois o outro
não olhe agora
que a ponte pende e o abismo é fundo:

há pântano
e bocas abertas
há visgo
e do escuro ecoam sons inomináveis

os olhos traem
trazem das sombras 
o vulto da morte
sedutora
fingida de mãe sempre pronta ao abraço

um sussurro:
um pé, depois o outro
(a palavra tão sólida... podia tomá-la nos braços!)

depois, há calma
há o dia
o corpo pulsa

no olhar se reflete o horizonte




imagem: the equilibrist, romero-leo
fonte da imagem:  http://romero-leo.deviantart.com/art/The-equilibrist-140631825