sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Soneto


gosto de pensar que sou um ser aquático
que nasceu em terra firme por engano
e que um dia cada pedaço do que sou
retornará ao seu lugar, que é o oceano

gosto de supor que dentro de mim exista
uma concha, um caramujo, algum coral
e que este sangue que tenho hoje vermelho
ficará um dia transparente, só água e sal

é um conforto imaginar-me assim
percorrendo mares, levada nas correntes
na espuma branca das ondas, diluída

no ilimitado das águas encontrarei enfim
a profundeza inusitada e azul da liberdade
que tanto persegui por toda vida
`

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

poexistência

há mesmo um certo esforço
nesta prática de transformar
plavras ásperas em versos doces
idéias soltas num conjunto
com sequência
com sentido
com sonoridade
que toque ao mesmo tempo
o coração e o ouvido

fazer poesia é como viver:

está-se sempre tentando
pôr contornos ritmados
no que eternamente vasa
num murmurar
subvertido

pôr um acorde de conforto
no que sempre faz
dissonância
pé quebrado
e ruído

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Indriso


se justo agora alguém me perguntasse
da vida o que eu mais queria
- ser feliz apenas, lhe diria

andar na praia, sentir a areia, ouvir o mar...

viria, então, a próxima pergunta:
tão pouco? tão só-isso? nada mais?
- sim, só isso, doce amigo

que já é bom ter-te aqui comigo, partilhando minha paz...
'

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

[há uma dor que é água...]


há uma dor que é água

fluida, ela espalha
se enfia em cada canto
em cada fresta
atrás de toda alegria tola
por baixo de todo riso

é uma água escura
mas mesmo assim
é água pura

é preciso deixá-la entrar
escorrer, percorrer, lavar

é preciso deixá-la inundar
incorporá-la pela pele
em cada célula

que ela seja o solvente
que dilui todo o resto
de outras dores e temores
até que, finalmente
na enxurrada algo se perca
algo se lave
de algo se livre
definitivamente


'


sexta-feira, 14 de novembro de 2008

interiores

dentro da casa escura
uma solidão com forma humana

dentro do olhar parado
um coração desenganado

dentro do mal avança
a total desesperança

dentro do corpo inerte
uma célula subverte

dentro de si encerra
a mais sangrenta guerra

dentro da luz se solta
num caminho que não tem volta

dissolvido no mar termina
o seu sonho de menina
`

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

esses


sou sem ser
só,
sonho: sendo

seria simples sobreviver
sem sintaxes
sem segredos

sentimentos
sem sentido
são
sortilégios
sorrateiros

(esses esses
excessivos
sussurram
nos meus ouvidos
o dia inteiro!)

sons suspensos
outros submersos
surpreendem
nos meus versos

sílabas são peças
do meu quebra-cabeças-universo

'


'

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

entre

mundo binário
não impera
ou sim
jamais talvez
nem ao contrário

se não preto
então branco

(no céu vejo azul: espanto!)

entre tanto cinza
qual o claro
qual escuro?
não sei bem
se bem mal faço
ou faço mal
o bem que procuro

se não amor
ódio
se não santa
puta
se não falo
castro ou calo?

(já ninguém me escuta!)

'

domingo, 9 de novembro de 2008

Diálogos Poéticos: Caetano com Decio


Caetano Veloso


Língua



Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódias
E uma profusão de paródias que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior
E deixe os portugais morrerem à míngua
“Minha pátria é minha língua" Fala Mangueira! Fala!
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer o que pode essa língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas
Vamos na velô da dicção choo choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E - xeque-mate - explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Adoro nomes, nomes em Ã
De coisas como Rã e Imã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier
Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé e Maria da Fé e Arrigo Barnabé
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer o que pode essa língua?
Incrivel! É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco, Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo!
A língua é minha pátria e eu não tenho pátria: tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
Será que ela está no Pão de Açúcar?

Tá craude brô você e tu lhe amo
Qué queu te faço, nego?
Bote ligeiro
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem



Decio Pignatari


O Lobisomem


O amor é para mim um Iroquês
De cor amarela e feroz catadura
Que vem sempre a galope, montado
Numa égua chamada Tristeza.
Ai, Tristeza tem cascos de ferro
E as esporas de estranho metal
Cor de vinho, de sangue, e de morte,
Um metal parecido com ciúme.

(O Iroquês sabe há muito o caminho e o lugar
Onde estou à mercê:
É uma estrada asfaltada, tão solitária quanto escura,
Passando por entre uns arvoredos colossais
Que abrem lá em cima suas enormes bocas de silêncio e solidão).

Outro dia eu senti um ladrido
De concreto batendo nos cascos:
Era o meu Iroquês que chegava
No seu gesto de anti-Quixote.
Vinha grande, vestido de nada
Me empolgou corações e cabelos
Estreitou as artérias nas mãos
E arrancou minha pele sem sangue
E partiu encoberto com ela
Atirando-me os poros na cara.
E eu parti travestido de Dor,
Dor roubada da placa da rua
Ululando que o vento parasse
De açoitar minha pele de nervos.
Veio o frio com olhos de brasa
Jogou olhos em todo o meu corpo;
Encontrei uma moça na rua,
Implorei que me desse sua pele
E ela disse, chorando de mágua,
Que era mãe, tinha seios repletos
E a filhinha não gosta de nervos;
Encontrei um mendigo na rua
Moribundo de fome e de frio:
“Dá-me a pele, mendigo inocente,
Antes que Ela te venha buscar.”
Respondeu carregado por Ela:
“Me devolves no Juízo Final?”
Encontrei um cachorro na rua:
“Ó cachorro, me cedes tua pele?”
E ele, ingênuo, deixando a cadela
Arrancou a epiderme com sangue
Toda quente de pêlos malhados
E se foi para os campos da lua
Desvestido da própria nudez
Implorando a epiderme da lua.
Fui então fantasiado a travesti
Arrojado na escala do mundo
E não houve lugar para mim.

Não sou cão, não sou gente - sou Eu.

Iroquês, Iroquês, que fizeste?


***

ra terra ter
rat erra ter
rate rra ter
rater ra ter
raterra terr
araterra ter
raraterra te
rraraterra t
erraraterra
terraraterra


***


caviar o prazer
prazer o porvir
porvir o torpor
contemporalizar

abrir as portas
abrir as pernas
abrir os corpos
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imagem montada a partir das fontes: http://lh6.ggpht.com/_TWs4oAmD4MA/SLcOmYd9MKI/AAAAAAAAAMc/2NLjD9c3W0I/decio_piganatari.jpg

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

indriso


Marcia Szajnbok


há uma aranha em mim que tece sonhos

polimericamente crescem os fios
entrelaçam, recobrem, enredam
a mosca desatenta que se encanta

e poliquimericamente se entrega
se entrelaça, se esconde, se enreda
até que perde a saída, e lá estou

eu mesma, a mosca pelo sonho digerida

`

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

é bom...

banho de banheira
Debussy ao piano
chocolate meio-amargo
ler a noite inteira

comer pastel de queijo
um bom livro de poesia
champagne ou vinho tinto
beijo

andar descalça na praia
sem ter pressa nem rumo
catando conchas feito criança

ao som ritmado do mar
fechar os olhos, abrir os braços
soltar o corpo numa dança
'

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Amanda


Marcia Szajnbok


Amanda
Sim, que é tão amada
Que sente tanto
E pensa muito
E sabe sempre
Como a vida
É complicada...

Ah, Amanda
Sim, que é tão linda
Esses seus olhos
De expressão pura
E em teu sorriso
A alegria infinda
A franqueza leve
De quem crê, ainda...

Minha Amanda
Minha menina
Já não criança
Tanto me ensina
Tanto me toca
Toda emoção
Por mais que esconda
Por mais que finja
Ah, como é grande
Teu coração!

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Indriso

Marcia Szajnbok


e se estivesse aberto o quarto
se de areia fosse o leito
e, sem lâmpadas, luz de estrelas

e se de te amar ficasses farto
se de me amar ficasses satisfeito
se dançássemos ao som do mar

bem podia o mundo então ficar estático

bem podia a vida então eternizar
'

sábado, 1 de novembro de 2008

[assim escrevo...]

Marcia Szajnbok

assim escrevo:
solto as mãos
no teclado, no papel
tanto faz
lápis, caneta
guardanapo, saco de padaria...
e são os dedos que inventam
que empilham as palavras
elas vêm, automáticas
passam por mim à revelia...
e quando, depois de feito,
procuro um significado,
sempre me encontro
nua
no leito
desse universo de mim
inventado...