sábado, 30 de maio de 2009

amigos que escrevem: marcos wagner da cunha

CUORE BUGIARDO

Nel mio cuore ci sono
delle verità
incompatibili fra di sé

Proprio per questo
sono tutte
ugualmente vere

Per amore
io faccio
dei mondi

Per amore
il mio cuore
è bugiardo.
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CORAÇÃO MENTIROSO
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Meu coração
tem verdades
incompatíveis entre si

Justo por isso
são todas
igualmente verdadeiras
`
Por amor
eu faço
mundos
`
Por amor
meu coração
mente!


Marcos Wagner da Cunha é também psiquiatra e também devotado à literatura, como leitor e escritor. Este poema foi originalmente escrito em italiano. A versão em portugues é do próprio autor.
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quinta-feira, 28 de maio de 2009


só um corpo

existo sem saber disso
respiro, procuro, insisto

olho em volta, busco imagens
gravo sons, nomes, paisagens
o cenário pronto, a peça inacabada
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o palco escuro, a platéia estática, o ator mudo

movo um pé, depois um braço e a nuca
da boca parte uma canção inventada
que enche o ar, contagia o mundo

das palavras libertas vai sobrando
num rastro de brilho e pó

um corpo só


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imagem: Syzifus, Vik Muniz

segunda-feira, 25 de maio de 2009

mais um soneto

bem preferia um mar de águas calmas
transparência morna a envolver corais
e formar piscinas salgadas e limpas
onde a vida fosse toda calma e paz

mas trago sempre em mim essas ondas
essas vagas enormes e revoltas
a bater nas pedras e quebrar nas praias
e agitar areias com seus vendavais

há sempre tempestade e movimento
essa impossibilidade de conter
o que faz a vontade incessante

volta e meia o coração inquieta
o corpo treme e a alma voa
buscando a eternidade que se faz instante
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sexta-feira, 22 de maio de 2009

tom




hoje queria escrever leve:

texto feito de espuma branca
com cheiro de jasmim
e ritmo de bossa nova

queria encontrar o tom
achar o acorde perfeito
no meio da dissonância

fazer uns versos azuis
com cheiro bom de maresia
e brisa fresca no rosto

uma poesia tomjobim
que fizesse transbordar a alma
de simplicidade, calor e calma




'


[... é assim: tem-se uma conversa fortuita e a idéia-semente fica plantada, à espera de que germine... Tom Jobim ficou na minha cabeça, rodando entre trechos de músicas, imagens, sensações... quando acordei, os versinhos nasceram... era o broto da palavra... e assim a vida segue...]

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quinta-feira, 21 de maio de 2009

marasmo

dias de alma silenciosa
sem escrita, sem palavras, sem sonhos
dias mornos
sem sol, sem chuva, sem acontecimentos
dias planos
dias onde a vida arrasta o corpo
e nem sabem de si os movimentos
dias secos
a comida vem sem gosto
e não se tem paciência de tomar vinho
dias bestas
forrados de distâncias
descoloridos de afastamentos
dias em que é melhor ficar sozinho
dias assim
que apenas passam
devagarinho

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terça-feira, 19 de maio de 2009

indriso


os olhos eram todo o corpo
os olhos postos no retrato
decorando aqueles traços

a alma, tão distante, onde andaria?

mergulhada na água clara
do olhar que não a via
procurando um resto,um rastro

por que longínquos mares esse olhar navegaria?


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imagem: Blue Sea, Berit Bjørseth

segunda-feira, 18 de maio de 2009

cantiguinha



era uma vez
uma vez

e outra vez ela se fez
e mais outra e outra mais

e tantas vezes em seguida
que levou toda uma vida

para que a vez se desse conta
de que era mesmo tonta

de esperar ser novamente
o que fora eternamente

foi-se embora então, cansada
criou asas: vez passada...



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imagem: Praça da República (1915), Coleção Folha São Paulo Antiga
fonte da imagem:http://spantiga.folha.com.br/foto_10.html

sexta-feira, 15 de maio de 2009

[quando chegou....]

quando chegou parecia enorme a rua
e, tão pequenos os pés,
cada passo pouco avançava

novidades, cantos e risos
e pouco importava o quanto
parecia longo o caminho
ou o quanto a rua crescia
bem diante de seu sorriso

mas já nem tudo floria
havia becos escuros
soluços, partidas
e sombras por trás dos muros

naquela estranha estrada
quanto mais longa a caminhada
mais queria seguir

quem sabe mesmo andar sempre
não ter nenhuma parada
não ter jamais que partir

numa tarde azul e fria
deu um passo comum, corriqueiro
e nem se deu conta, a princípio,
que depois o chão lhe fugia
que o céu todo escurecera
que estrada ali não havia
nem mais passos
nem pés, nem risos

que só algumas pegadas
deformadas por tempo e atrito
eram as plácidas testemunhas
de seu percurso finito
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imagem: claroescuro, uma brincadeira a partir de uma foto tirada na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre

quarta-feira, 13 de maio de 2009

assepsia




o sol pela janela

a flor dentro do vaso
o gato estático na tela

grades e muros ao redor
a máscara atrás do espirro
sempre a luva antes do toque

porque não se pode estar perto demais...

entre o contato e a ameaça
o limite frágil esfumaça
e afinal nunca se sabe

se o que mais se quer
é bem ou devasta

e a vida afasta


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imagem: Three Spheres II, M. C. Escher

segunda-feira, 11 de maio de 2009

as sombras são

era escuro e não sabia
onde a estrada
onde o abismo
e nem mesmo se havia
um caminho para andar

tão escuro
tudo quieto
tudo imóvel
paralítico
mas a pulso
prosseguia
apesar do susto
apesar do medo
passo a passo
devagar

tecia a história
fazia o enredo
e da descrença de que podia
constatou, com alegria,
no horizonte a claridade

entre o terror e a surpresa
descobriu à luz do dia
que, por destino ou por sorte,
depois de toda aquela morte
pulsava um corpo:
algo vivia

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sábado, 9 de maio de 2009

[retalhos de memória...]


retalhos de memória
esfiapados, frouxos
parcamente alinhavados
num pedaço de lembrança...

partes de uma história
tão antiga, tão distante
esfacelado, foi-se embora
o que restara de infância...

pedaços de parede
porta de vidro na varanda
paisagem feita de azulejo...

apego a um encontro não tido
sem toques, sem vozes
sem a força ameaçadora do desejo...

o resíduo de um amor amarelado
que lá ficou, tão bem guardado,
na esperança de não acabar
sem sequer ter começado...


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sexta-feira, 8 de maio de 2009

amigos que escrevem: beatriz moura


ÍNTIMA


Trago a outra
Que sou eu
Presa na face
Rasa do espelho

Sem máscaras
- Mulher na orla -
Escorro dos olhos
Pela fresta da frase

Solta no oco
Fundo de mim,
Sem asas
Mostro-me esta
Íntima e prestes
Prêt-à-porter


Bea participa do nosso Estúdio de Criação Poética. Trocou Sampa pela Baía, mas seu samba tem sempre um quê de paulistânia, de garoa e noite fria, e no meio dos seus gatos passeiam inconscientes... Outros textos estão em http://compulsaodiaria.blogspot.com/
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Imagem: Mulher ao Espelho, Pablo Picasso
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quarta-feira, 6 de maio de 2009

pleno


em ondas
vida e morte
maré alta cheia de cor e conchas
num instante baixa, tudo leva
varre a areia
esvazia a terra

o abismo seduz
mas é preciso que se escolha:
a morte morta
ou a vida viva?

basta de quase
de quando
de talvez!

que venha o amor que ama
a canção que alegra
o prazer que goza

que venha o mar vivo
e nos carregue
nos devore
nos envolva

e nos conceda o carinho último
até que tudo se dissolva
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imagem: fim de tarde em juquehy, marcia szajnbok

segunda-feira, 4 de maio de 2009

indriso

trincas, lascas, rachaduras
tudo o que enfeia
o oposto do cuidado

um resto de ser ficou pelos cantos

tudo o que estraga
que aniquila, devasta
o que é resíduo, rebotalho

um pouco de nada fingido de espanto

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sábado, 2 de maio de 2009

cat on a hot tin roof


luzes

teus olhos
que brilham


de mar e de estrelas
percorrem-me a pele
me buscam, me despem

fico

um pouco escondida
à espreita, à espera
do gesto, da vinda

do bote
da fera

faminta


*este formato é um blavino, uma criação dos amigos Volmar Camargo Junior e Juliana Blasina que, em noites insones, inventaram um soneto assim constituído - número de estrofes: 7; numero de versos: 13, distribuídos a partir dessa sequência: 1-2-3-1-3-2-1; tamanho dos versos: o objetivo é que o poema comece e termine com uma palavra, e que vá "aumentando" até chegar ao verso-estrofe central. Desse modo, o poema deveria ter o formato de uma pirâmide. O meu, entretanto, saiu com um formato de abismo. Nada que o sono e o inconsciente não expliquem...

imagem: Paul Newman e Elizabeth Taylor em cena de Gata em Teto de Zinco Quente (Cat on Hot Tin Roof, 1958), baseado na peça homônima de Tenessee Williams

sexta-feira, 1 de maio de 2009

[a água me chama...]




a água me chama e quero ir soltar-me deixar-me simplesmente ir com as ondas liberta dos destinos das chegadas das promessas apenas fluindo com as correntes aproveitando cada uma das originais sensações da oscilação de temperatura sobre a pele


a água me chama porque sou eu também mar sou células feitas de água e sal e o contato íntimo com o meu mesmo me pacifica como um reencontro como um regresso à mais primeva origem como à mãe


a água me chama com sua voz melíflua e ritmada e suas canções de maresia criam sereias que atraem marujos esperançosos por braços quentes corpos ardentes amor infinito


quando me deixo ir com a água sou eu a sereia e o marujo


meu corpo é o calor em meio às águas


sou até onde as ondas persistem
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