quarta-feira, 23 de julho de 2008

Elipse

De onde teria surgido aquele bicho? Sem que sua presença lhe desse motivo suficiente para levantar do sofá, percorreu com os olhos todas as vidraças, a porta. Esticando o pescoço, tentou avistar a janela do banheiro. Tudo fechado. Elevou e abaixou os ombros, tentando relaxar a musculatura cervical. Arregalou bem os olhos, para se certificar de que não se tratava de uma dessas ilusões que nos acometem na penumbra. Não era. Ele estava mesmo lá, aquele gato.
A única iluminação da sala vinha dos neons que piscavam na rua lá em baixo. Tons avermelhados e azuis se projetavam na parede em efeito estroboscópico. Na penumbra, o gato parecia acinzentado, talvez um pouco castanho. O que chamava atenção eram seus olhos enormes, verde-claros, quase amarelos. Pareciam acesos. Esse bicho não pisca? Parecia uma estátua de gesso, ou uma imagem de cera do museu da madame... madame o que, mesmo? Não se lembrava.
Um arrepio de desconforto percorreu-lhe as costas. Não se lembrava disso também... Do que mais já teria esquecido amanhã? Rememorou o próprio nome, a idade, o nome da mãe, do pai, das irmãs, evocou mentalmente seus rostos. Era sempre um alento recuperar aquelas fisionomias familiares. O RG, o número do telefone e o endereço eram dados que levava já escritos num papel, para o caso de se ver em algum lugar inusitado sem saber por qual caminho chegara lá.
O gato se moveu. Lento e sensual, aproximou-se e esfregou a lateral do pequeno corpo na mão que pendia do sofá. Num impulso, fez-lhe um carinho. O gato parou e virou-se, parecia olhá-lo diretamente nos olhos. Num salto, foi aninhar-se em seu peito. Desde quando estaria ali? Não se lembrava de jamais ter tido um gato. Mas, nas circunstâncias atuais, isso não significava muito.
Desde que a perda começara, sentia como se o espaço da vida viesse se estreitando mais e mais. O maior problema era a não-linearidade do processo. Semanas se passavam com tudo intacto. E num dia qualquer, sem aviso, uma nova lacuna. Era assim que imaginava a doença progredindo: um buraco a mais aberto em seu cérebro. Neurônios mortos silenciavam para sempre a informação lá contida. O neurologista lhe dissera que não era bem assim, que havia um tipo qualquer de comunicação entre as células, os tratos, as vias... não entendera bem. Pouco importava, aliás. Era ele, o médico, quem precisava saber de neurologia. Para si próprio, visto de dentro, o que vivia era a experiência desagradável de imaginar o próprio cérebro se esburacando progressivamente. E o desespero de constatar a progressão do apagamento da própria história. Sou a soma de tantos quantos conheci.
Na mesinha lateral, o espinho maior. A foto no porta-retrato era de um rosto lindo, uma jovem morena, cabelos caindo no ombro, um sorriso largo de quem sabe o que é ser alegre. Quem era? Há dias se fazia a mesma pergunta. Há dias? Talvez muito mais do que dias... Quanto tempo já passara? Não sabia. Numa provocação, aquele olhar reiteradamente perguntava: como você pode esquecer? E a dor no peito agudizava a vontade de chorar. Ou de desaparecer.
Um fio discreto de lágrima escorreu-lhe pelo canto externo dos olhos. Já estivera assustado, desesperado, já se deixara tomar pela raiva. Agora, apenas triste. Talvez o gato fosse mesmo seu, afinal. Pensou em lhe dar um nome, mas logo se deu conta de que isso de nada adiantaria, pois na manhã seguinte já não se lembraria dele novamente. Tentou abraçar o felino que, sentindo-se privado de sua liberdade de movimentos, pulou para o chão e deitou-se debaixo da mesa.
O vizinho de cima começou seu estudo de piano. Como sempre, ele tocava à noite. Não tentou decodificar a música, o que seria esforço vão. Deixou-se levar em escalas, no crescendo e decrescendo dos sons puros de teclas apertadas uma a uma. O piano é um instrumento de cordas percutidas. Como essa, várias lembranças disparatadas acudiam-lhe repentinamente: o número atômico do carbono é seis. Transforma-se o amador na coisa amada, por virtude do muito imaginar... Como continuava? De quem era o poema? Buracos.
Tomou o retrato da moça para vê-la mais de perto. Se fotos tivessem cheiro... O neurologista lhe dera algum motivo racional para justificar que a memória olfativa era a última a se perder. Já não se lembrava da explicação, mas gostou de supor qual perfume viria daquele corpo feminino e jovem, atraente, sedutor. O cheiro de pêssegos maduros se misturando ao café recém-coado nas manhãs de natal, o conduzia à casa da avó. Uma certa água de colônia que recendia a lavanda e alfazema o punha, menino, no colo da mãe. Mas aquela moça...
Certamente a teria amado. Não teria ali em plena sala uma foto sorridente de quem não lhe tivesse tido importância. Mas, além da conjetura, não conseguia progredir. Onde? Como? Quando? Tudo esquecido. Percebeu, com horror, que de certo modo não conseguia tampouco evocar a lembrança do próprio amar. Supor tê-la amado já não lhe provocava sensações... do quê? Somos mesmo seres emoldurados em pensamento. Perdidas as idéias, as palavras, perde-se também um tanto do frêmito que anima o corpo. E a dor no peito voltou, pior.
O gato circulava pela sala com sua habitual discrição. De quando em quando parava, encarava-o. Gatos eram animais sagrados no Egito antigo. Balançou a cabeça: e daí? De que serve uma idéia sem conexão com o contexto da idéia? Dom Afonso Henriques. Briófitas são vegetais avasculares. Trocaria de bom grado essas memórias inconvenientes por uma informação: de quem era aquele rosto? Que história teriam compartilhado? Que palavras haviam trocado? Que carinhos?
Fazia calor. Suava. Ergueu-se, lento e silencioso como o gato, e abriu completamente o vidro da janela ampla da sala. O ar entrou fresco e sentiu diminuir o cheiro de ambiente fechado que já se tornara imperceptível para suas narinas habituadas. Lá embaixo, muitos carros, postes de iluminação antigos, preciosidades do centro velho, os neons, as buzinas. Da janela de cima, o piano em exercícios contínuos e monótonos. Sequioso por ar puro, o gato também se aproximou da janela. Parecia adivinhar-lhe os pensamentos. Talvez quisesse lembrá-lo de que só os gatos têm, supostamente, sete vidas.
Já pensara nisso tantas vezes! Tirou a foto do porta-retrato, enfiou-a por dentro da camiseta, junto ao corpo. Inspirou uma quantidade grande de ar, depois esvaziou lentamente os pulmões para que o corpo ficasse mais pesado. Peso igual a massa vezes aceleração da gravidade. Corrigiu-se: mais pesado não, mais denso apenas. Densidade igual a massa sobre volume. Seria hoje.

Um comentário:

Anônimo disse...

Obrigado por intiresnuyu iformatsiyu