terça-feira, 22 de julho de 2008

Eternamente




“Amor, quantos caminhos até chegar a um beijo,
que solidão errante até tua companhia!...”
Pablo Neruda





Primeiro veio a escuridão. Depois, o frio. Em seguida, o silêncio absoluto. Difícil explicar o que sou agora. Já não posso me chamar um ser. Curiosamente, e contra todas minhas próprias expectativas, há consciência nisto que me tornei. Há também memória, e um vago senso de orientação espacial. Por isso sei que estou em movimento. Há um pouco do que foi meu corpo em volta disto que em mim pensa, e navega neste mar como nau de contornos imprecisos. Já não há mais células. Apenas átomos e eventuais moléculas de complexidade inferior a das proteínas. Por que misterioso mecanismo se agrupam assim, como cardume invisível, não sei dizer. É assim, constato.

Esta consciência que tenho, entretanto, não é contínua. O último instante de luz foi no encontro de olhares doces. Há, então, um lapso e depois isto: o resto material de mim agrupado ao redor de pensamentos, dissolvido em água. Cinzas no mar, meu desejo reiteradamente expresso. E agora estou aqui, dissolvida e livre.

As correntes me submetem a temperaturas várias. As frias, mais agradáveis. Sempre preferi o inverno ao verão, e não compreendo onde em mim carrego tal preferência atualizada. Trago também outras lembranças em bagagem impalpável: gosto de chocolate, sons de piano, medo de barata. Nenhuma dor. Cada uma de nossas dores, só a sentimos uma vez. Amontoamos nossos momentos dolorosos no arquivo morto do existir, e só é possível acessá-los a partir das contingências: onde, quando, de que modo. Dor e tempo devem provir da mesma substância, são feitos para passar. Ambos irrecuperáveis.

Neste modo inusitado de estar no mundo, já não sou mais refém do tempo nem do espaço. A ausência de forma é de uma liberdade insuspeita! Vou, sem contornos, levada pelo movimento ordenado das marés. Irei, talvez, ao acaso, e jamais haverá porto em que termine esta jornada. Curiosamente, entretanto, tenho a intuição de que sigo orientada por alguma misteriosa força, numa rota que parece pré-traçada. Não tenho bússola, mapa nem telescópio. Não posso ver terras nem céu. Mas sinto a presença das estrelas sobre as águas, sobre mim. Sei da lua refletida branca, e do sol que doura a superfície nas manhãs. Sei sem ver. Sinto-os. E também as rochas, os recifes de corais, as pequenas ilhas. Vou, ainda que difusa, sem esbarrar em nada que me pulverizasse. Uma nuvem de matéria dispersa leva de mim o que eu nunca acreditei que permanecesse além do momento último.

Pensar, sentir, saber sobre o que não vejo – tudo é uma inesperada novidade. A vida inteira sofri de incerteza. Anos a fio, iludida pela falsa certificação dos sentidos: o que há é o que eu vejo, ou ouço, ou palpo. Enxergo-te, logo existes. Grande equívoco, pois, entre o que se vê e o que de fato há, cabe um universo de possibilidades. Procurei tanto tempo pela certeza de mim através da certeza do amor dos que me cercavam... quanto desperdício! Desperdício de tempo, de sofrimento e, sobretudo, de amor. Podia ter dado melhor destino ao meu amor, se soubesse fazer, viva, isto que a natureza, ou a tão questionada divindade, faz por mim agora: guia-me, qual criança brincando de cabra-cega, e já não tenho opção, senão confiar completamente nessa força que predetermina meu caminho.

Descubro que é preciso prescindir do corpo para compreender o verdadeiro sentido da entrega. O corpo não se pode entregar por completo, nem permanentemente. Mesmo no momento de maior amor, dois corpos podem estar em proximidade infinitesimal, mas continuarão a ser dois. Há a barreira da pele separando, intransigente, o dentro e o fora. Apenas o desejo é que se funde. E tal aproximação não dura mais que minutos. Mesmo se somarmos todos os minutos assim passados ao longo de uma vida, será pouco, em comparação com o tempo do corpo só. Agora, assim descorporificada, sinto a ânsia de outra entrega. É ela que me impulsiona, que gera o movimento. Desejo em estado puro, energia que carrega consigo a matéria desconexa, que ainda assim perfaz um todo, algo que já não sou mais eu, mas que traz do que fui a partícula fundamental e inominada. É desse ponto apenas, dessa posição definida no espaço, que emana o impulso: um não-sei-quê de busca e querência, que se dirige, decidido... para onde?

Sou incapaz de dizer se vou devagar ou rápida, se a direção que sigo me põe a norte ou a sul de onde estava antes. Sei apenas que avanço. E, à medida que vou, sinto-me mais fortemente impulsionada, como se entrasse agora num campo magnético que transforma o que antes era anseio, em atração irresistível. Numa vertigem prazerosa, deixo-me levar na profundeza das águas, e suponho que o aglomerado de partículas que me compõe trace no azul desenhos originais e móveis. Não sei se tenho cor, mas me sinto também azul, ou verde, tons do mar com cuja transparência me confundo.

A partir de certo ponto, há calor. Não sei se ele vem de mim ou da vastidão marinha que me cerca. Há nesse aquecimento algo de conforto e familiaridade. Deixo-me embalar no colo das águas e, tivesse eu ainda olhos, certamente choraria de emoção transbordante. Estranhas memórias, desprovidas de imagens, me trazem de volta pessoas que amei. Pessoas que, como eu, já não têm corpo, mas cuja presença é inconfundível. Carinho inunda. Conjeturo que este poderia ser o ponto final desta viagem. Aqui ficaria bem, em suaves companhias.

Há, entretanto, entre esse emaranhado de fios condutores de energia e afeto, um que se isola dos demais, se sobressai não por ser maior, nem melhor. Apenas diferente. Único.

Imediatamente, identifico-o. Como não? Tantas vezes nossos caminhos se cruzaram! E, em todas, houve não um conhecimento, mas um reconhecimento, não um encontro, mas um reencontro. A primeira vez se perde na poeira da história.Temos estado juntos sempre... Mesmo quando os percursos ou as escolhas aparentemente nos afastaram. Mesmo quando amamos, verdadeiramente, outras pessoas, e pudemos semear assim um pouco de amor num entorno cinzento. Estivemos juntos quando, num momento qualquer de uma noite indefinida, acordamos simultaneamente, cada qual em sua latitude, e tivemos a mesma impressão mágica de estar um ao alcance do toque do outro. E sinto-me simultaneamente surpresa e não surpresa por estarmos agora aqui, renovadamente juntos, nesta condição sem nome.

As águas em volta agitam-se em redemoinho, e na vertigem das vagas gigantes sinto-me espalhada, mais do que nunca dispersa, e paradoxalmente coesa e completada. Não é mais só minha a substância que se dissolve. Há, de fato, algo além da simples solução. Há um frenesi de partículas que se combinam, e se ligam, e se fundem, e rodopiam no movimento das ondas como numa dança inebriada. Não há corpos, não há bocas, mas fazem-se abraços e beijos, toques ternos e soluços. Faz-se amor. Há um grito de felicidade que não se produz, pois é muda a matéria inerte. Libera-se nesta reação a mais intensa energia. Uma explosão. Plenitude. Luz. Eternidade.

***
O mar quebrando nas falésias e o céu noturno azul marinho compunham o cenário para o jovem casal enamorado.
- Você viu?
- O quê?
- O clarão em cima do mar... parecia uma estrela cadente ao contrário.
- Uma... o quê?
- Uma estrela ascendente... Você não viu, um brilho subindo?
O rapaz, não muito interessado nesse tipo de eventos astronômicos, abraça ainda mais fortemente a moça:
- O único brilho que vejo vem dos teus olhos.
E depois não disseram mais nada, nem viram mais nada, totalmente alheios ao fato de que naquela noite nascera, bem ali, diante deles, uma nova estrela.

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