Apertou firme a moeda na palma da mão.
- Cara, eu vou. Coroa, não vou.
A moeda e a memória agitadas em reviravoltas sincrônicas. Numa seqüência de imagens em apresentação pós-moderna, via-se, via-o, jovens, confusos, apaixonados, ciumentos, beijos, brigas, declarações de amor e de ódio... Quando, finalmente, a moeda pousou na palma da mão, fechou os olhos, respirou fundo, e conferiu: cara.
Pronto, estava decidido, iria ao encontro. Com o coração disparado, deu início ao tormentoso processo de escolher o que vestir, o que calçar, como arranjar o cabelo. No espelho, achou bonito o rosto maduro, a pele cuidada, quase sem rugas. O que destoava eram os olhos. Transbordavam ansiedade, aqueles olhos de menina. Pôs no bolso a moeda-decisão, e saiu:
- Seja o que deus quiser!
***
Chegou cedo, mas fez questão de se demorar o suficiente para atrasar dez minutos. Do outro lado da rua, podia vê-lo sentado numa das mesinhas externas do café. Pensou com seus botões que ele estava mais gordo, mais grisalho e um pouco mais careca do que da última vez em que se haviam visto. Parecia também mais sereno. Onde teria ido parar toda aquela energia que ele esbanjava, tanto ao amar quanto ao agredir? Esvaiu-se no tempo.
Intrigada, se perguntava o que ele havia de querer agora, depois de tudo. Anos e anos de convívio, filhos, risos, netos, dores, o longo e trabalhoso processo de construir e desconstruir um casamento. Depois, nada. Anos de silêncio. E agora, de algum ponto remoto do passado, ele ressurgia, espectral, chamando-a para dizer... o quê?
Lá estava ele com seu jornal, como sempre. Pedira uma Coca-cola. Com gelo e sem limão, certamente. Continua bebendo refrigerantes, constatou. Tentava nomear a estranha sensação que ia lhe invadindo. Parecia vir da terra, subir pelas pernas, um amolecimento, uma ternura nostálgica. Tinha ímpetos de atravessar a rua e lhe acarinhar o rosto, dizer a ele com uma doçura perdida no passado o quanto se importava, o quanto gostaria de vê-lo bem, tratando de si, cuidando da saúde, tomando suco natural ou água. O que ele responderia? “Oh, querida, obrigado”!? Não. Definitivamente não. Seria mais provável um áspero “o que é que você tem com isso?” ou “você sempre acha que sabe o que é melhor para os outros, não é?”, seguido daquele suspiro que ficava entre o desprezo e o tédio, que deflagrava nela uma vontade quase incontrolável de morrer. Ou de matá-lo.
Esse sentimento misturado, esse gostar com laivos amargos de desgostar, era velho conhecido. Quando surgira? Não era capaz de dizer. Não havia um ponto, um trauma. Foi o tempo, o passar dos dias, as pequenas desatenções, os mal-entendidos do cotidiano, as grosserias, a falta de paciência. Não souberam encontrar essa tolerância recíproca que é o amor posto no tempo. Saberiam agora? Evidentemente, poderia sentar a seu lado e tomar sua água, ignorando toda a diferença entre ambos materializada ali naquela escolha prosaica da bebida a ser consumida. Seria um esforço. Valeria à pena?
O velho ressentimento ia subindo pela garganta. Lutara contra ele anos a fio. Tinha a convicção íntima de que esse ressentimento é que lhe fizera adoecer logo após o divórcio. Senti-lo de novo, surpreendentemente forte e vivo dentro do peito, lançou-a numa nuvem cinza de tristeza. O mundo ao redor em pleno verão colorido, e ela esfumaçada, nublada e melancólica como uma manhã de outono. Reviveu, com nitidez, aquela capacidade longamente desenvolvida durante o casamento de despertar, cada um, o que de pior havia no outro. Os anjos se perderam. Mantiveram-se unidos pelos sagrados laços de seus demônios. Culpara-o tantas vezes! Mas agora, vendo-o assim, a uma distância de metros, ele parecia apenas um homem maduro, sério e solitário. Era preciso manter essa distância, sentiu. Em algum ponto da aproximação, o demônio despertaria. Sentia-o já inquieto no fundo da alma. E não gostava disso. Não gostava nem um pouco disso.
Sentiu-se abruptamente envelhecida, doíam-lhe as pernas, as costas. O olhar pousou, por acaso, na mão esquerda e encontrou-a cheia de pintas, as veias aparentes e sem aliança. Viu-se toda naquela mão, em pleno processo de deixar o tempo tecer seu trabalho de tempo, e envolvida por esse limite em que a liberdade e a solidão se tocam e se confundem.
A outra mão encontrou no bolso a moeda. Sem hesitar, jogou-a na caixinha do cego que, sentado na calçada, tocava uma flauta desafinada. Ao invés de atravessar a rua, seguiu em frente, rumo à praia. Chegando à areia, livrou-se dos sapatos. Os passos, de início lentos, foram se transformando num quase correr, em pulos, numa estranha dança solitária à beira do mar. Queria, quase precisava, deixar a vida entrar, pelos pés que tocavam a água, pela pele do rosto, que se oferecia ao vento.
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