Marcia Szajnbok
O prédio tinha todo o estilo dos anos cinqüenta. Mesmo depois de reformas superficiais, a estrutura se manteve antiga. Talvez por isso a despreocupação com o isolamento acústico. À época de sua construção, provavelmente as pessoas não se sentiam tão invadidas em sua privacidade, não andavam todo o tempo tão armadas contra o outro, tomado sempre como inimigo iminente. Com as novas portas corta-fogo, a escadaria em caracol se transformara em câmara de eco, de modo que era possível ouvir qualquer coisa dita nos lances acima ou abaixo.
Logo ao abrir a porta do quarto andar, ela se deparou com o choro. Um soluçar forte subia pelo vão livre da escada. Temos todos algo dentro de nós que nos impulsiona para o segredo, ouvir atrás de portas, espiar pela fechadura. Tomada por curiosidade quase infantil, foi descendo devagar, pé ante pé para não assustar quem quer que fosse o dono do choro. Aprumou o ouvido: parecia choro de mulher.
A cada degrau que descia, mais nítida se tornava a cantilena. Se a vida real tivesse, como filmes, uma trilha sonora, deveria agora ouvir o Prelúdio da Bachiana no4, de Villa-Lobos, a trilha perfeita para captar essa forma tão peculiar que os brasileiros têm de ser triste: mistura-se à nostalgia portuguesa um pouco de desespero africano e de lamento indígena, quase silencioso; põe-se tudo isso ao sol e ao som de risos de crianças morenas e muito magras e pronto, está feita uma tristeza brasileira.
Envolta nessas divagações, ultrapassou a porta de acesso ao terceiro andar e ainda não via ninguém. Seguia o som apenas. Lembrou-se do avô e da história tantas vezes repetida do flautista que, com sua música, encantava os ratos e os levava embora da cidade. Sentia-se assim, um rato encantado pelo choro dolorido de alguém que ainda não via. Continuava, hipnotizada, descendo, descendo. Pensou que poderia ser um rato num castelo mal-assombrado, habitado por fantasmas sofredores que enchiam o ar com seus ruídos lamuriosos à espera da redenção, por parte de algum vivo corajoso, de suas dores passadas.
O volume crescia agora, devia estar perto a mulher que chorava ininterrupta. À medida que se aproximava, uma dor sem nome ou motivo a contaminava mais e mais. Seu corpo, seus pensamentos, ela toda funcionava agora como uma caixa de ressonância para o mal-estar disforme que emanava daquela criatura. Em segundos, delineou uma constelação de associações: fatos, temores, pensamentos, situações, palavras. Tantas palavras para circunscrever aquela agitação de sentimentos, aquela pulsação de um não-sei-quê interno que transbordava, muitas vezes no final da tarde dos domingos, quando a vida sempre corria o risco de parecer sem sentido ou valor.
Na virada do penúltimo caracol da escada, avistou-a. De costas, encolhida junto à parede em posição quase fetal, as mãos entrelaçadas em torno dos joelhos, a cabeça deitada sobre as mãos. Parecia uma menina muito magra, miúda. O cabelo era curto, pintado de um vermelho berrante, espetado em estalagmites de gel fixador. Havia tatuagens por toda a nuca e parte dos braços. Fora da segurança habitual, perguntou-se: devia parar ou continuar descendo como se não a tivesse visto? Com certeza se tratava de uma paciente. Num hospital psiquiátrico, alguém naquela condição só podia ser paciente. Uma cena insólita: a paciente sentada na escada, chorando, sozinha. A doutora em pé, alguns degraus acima, paralisada sem saber muito bem como se comportar. Havia naquela moça uma certa impertinência. Aquele não era lugar para ficar chorando, afinal! Que fosse chorar no resguardo de uma sala, durante a consulta, no espaço protegido pela porta e pelo sigilo médico. Ali, na área de circulação, seu choro desafiava o mundo. Ela chorava como se discursasse. “Não sou eu a depressiva? Pois bem... vou sê-lo... Mas serei depressiva bem aqui, no meio do caminho, para que todos precisem se perguntar o que fazer com a minha dor... E que atire a primeira pedra, aquele dentre vós que nunca tiver sentido dor”.
Sem pensar muito, desceu os degraus que faltavam e sentou-se também na escada, ao lado da moça do cabelo carmim. Depois de alguns momentos, ciente da presença alheia ali tão próxima, ela levantou os olhos enormes, muito verdes, cílios longos. Em algum lugar dentro de sua mansão mal-assombrada a doutora reconheceu aquela expressão. Perda, solidão, desamparo. Ficaram ali, alguns segundoseternidades, olhando-se reciprocamente, em silêncio. Duas mulheres quaisquer, compartilhando esse tipo de angústia que só as mulheres sabem sustentar.
Na falta de coisa melhor, a doutora estendeu para a moça um pacote de lenços de papel que tirou da bolsa. Ela aceitou a oferta, inicialmente com os olhos postos nos lenços, como que a reconhecê-los, sem muita certeza quanto a sua utilidade. Vista assim de muito perto, com o rosto vermelho, inchado e molhado, ela não parecia tão jovem. Havia uma discordância entre o rosto e o resto do corpo, como se a cabeça tivesse vindo décadas antes. Sorriu um sorriso um tanto sem graça, em agradecimento. O que agradecia? Os lenços? O olhar cúmplice? O instante de companhia?
Sorriu de volta a doutora, sem muita consciência de que também ela estava de algum modo grata. Levantou-se, despediu-se da suposta paciente com um aceno, sem palavras. Viu de relance, ao iniciar a descida do último lance da escada, que ela abria o pacote e enxugava o rosto com os lenços. Depois seguiu adiante em direção à porta da rua. Sentia uma espécie de alívio. Não o alívio do dever cumprido, pois não houvera dever algum posto em questão. Uma espécie de suspiro íntimo, desses que se dão diante do espelho, ou por vezes só no escuro do quarto depois que o mundo adormece. O conforto da possibilidade, do laço, da ponte, do puro e nada simples contato com o outro humano. O dia estava lindo. Em seus ouvidos, Villa-Lobos cedera lugar a um samba. Uma típica manhã de primavera brasileira: céu azul, sol forte, os ipês todos floridos. Saiu cantarolando “a dor da gente não sai no jornal”...