sexta-feira, 29 de agosto de 2008

UM POUCO DE MARIO QUINTANA


Os Poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...


O luar

O luar,é a luz do Sol que está sonhando



Bilhete

Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho,Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...



O Auto-Retrato

No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...

e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!


O pior

O pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso.

[Mário Quintana (1906-1994), poeta gaúcho, trabalhou em vários jornais, traduziu Proust, Conrad, Balzac, e outros autores de importância. Em 1940, lançou Rua dos Cataventos, seu primeiro livro de poesias. Seguiram-se Canções (1946), Sapato Florido (1948), O aprendiz de Feiticeiro (1950), Espelho Mágico (1951), Quintanares (1976), Apontamentos de História Sobrenatural (1976), A Vaca eo Hipogrifo (1977), Prosa e Verso (1978), Baú de Espantos (1986), Preparativos de Viagem (1987), além de varias antologias. Sobre Quintana, diz Carlos Heitor Cony: "Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema" - foi assim que ele definiu sua poesia e, em parte, se definiu.Culltivava, sem dúvida, uma nostalgia existencial que os críticos julgaram expressão de passadismo. A sutileza de seu humor chegava às vezes à total irreverência, a visão lírica da aventura humana, o menino atrás da vidraça, o homem que mora dentro dele mesmo: o poeta.(...) Foram os jovens que descobriram Quintana, já ancião mas ainda poeta".]

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Espelhos


Marcia Szajnbok

espelho, espelho meu,
podes me dizer
o que aconteceu?

vejo estranha a imagem
que, cega, nunca me viu...
a ilusão sustenta falsa simetria
breve, imprecisa e fugidia
desintegrada miragem
pisco e pronto, já sumiu!


alice foi-se espelho a dentro
encontrou outra de si
outros de tudo, outro mundo
a vida toda pelo avesso...

capta o olhar num repente
no espelho enevoado
o espectro transparente
que pouco a pouco vai cedendo
lugar a um vazio sem cor...

onde estava e onde estou agora?
de qual lado a realidade mora?
entre a luz e o reflexo
refrata-se em curva o mundo convexo...

como holograma ou delírio
não sei se acerto ou me engano:
não cabe em espelho plano
a outra de mim que vejo
e que tridimensional
desejo.

imagem: Hands, M.C.Escher

fonte da imagem:http://www.writedesignonline.com/history-culture/WD-A2Z/escher-hands.gif

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Amor I


Marcia Szajnbok

Um sopro, um vento...
Uma onda que quebra ora mais forte, ora suave...
Basta um momento....
O tempo incapturável de um olhar,
O calor da faísca que tudo ilumina
Mas é tão breve, fugaz...
Deixa sua marca instantaneamente.
Um toque que perdura na memória
Mesmo quando já não se recupera o rosto...
Um som que ecoa, alucina,
Mesmo quando a voz escapa...
O que é sempre falho, mas ainda assim, perfeito...
O que se faz eterno ainda que perdure um dia:

Amor
... sem tempo, sem história ou nome...
Puro efeito.



terça-feira, 26 de agosto de 2008

Soneto

Marcia Szajnbok


Angustiadas noites de domingo
No silêncio escuro ecoa a solidão
A inquietude vem do dia findo
Enche de medos a imaginação...


Medo da vida e medo da morte
Pior é o igual ou a mudança?
O movimento implica em risco, em sorte...
Paraliso entre o temor e a esperança...


Te desejava nessas horas do meu lado:
A ternura das mãos dadas em silêncio
O calor de se saber tão bem amado...


Te imaginando, te pressinto aqui comigo:
Que conforto pro meu coração cansado
É sonhar com você, meu doce amigo...

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Fragmentos

Marcia Szajnbok


Traço passos
Ando
Faço
Deixo rastros

Estilhaços
Multiplicam os espaços
Multicores vidros
Cacos

Como espelhos
Semiopacos
São pedaços
De outros tatos...

Desamarram-se os laços
Deliciam-me os abraços

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Narciso e Narciso


Ferreira Gullar

Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira.
Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é
como ele
outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.
E se amam mentindo
no fingimento que é necessidade
e assim
mais verdadeiro que a verdade.

Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.
E fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
- e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora
se odiando.
O espelho
embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam
se ferem
não se largam
que o inferno de Narciso
é ver que o admiravam de mentira.



[Poeta e teatrólogo brasileiro, José Ribamar Ferreira nasceu em 1930 em São Luís, Maranhão. Tornou-se um dos mais importantes poetas brasileiros surgidos após o movimento modernista de 1922. Em 1950 mudou-se para o Rio de Janeiro. Publicou A luta corporal (1954), obra considerada precursora do movimento paulista de poesia concreta. Com Poemas (1958) mostrou-se neoconcretista e liderou o movimento no âmbito carioca, com a publicação do ensaio-manifesto Teoria do não-objeto (1959). A partir de 1061 aderiu à poesia politicamente engajada do movimento Violão de Rua, do Centro Popular de Cultura, o CPC da União Nacional dos Estudantes, a UNE, do qual era presidente quando sobreveio o golpe militar (1964), sendo preso em 1968 após a vigência do AI5. Após um longo período vivendo na clandestinidade, parte para o exílio em 1971. Enquanto morava fora do país, colabora para O Pasquim, Opinião e outros jornais usando o pseudônimo de Frederico Marques. Retornou ao Brasil em 1977. Gravou um disco, Antologia poética de Ferreira Gullar pela Som Livre (1979), mesmo ano em que estreou Um rubi no umbigo, primeira peça que escreveu individualmente. Em 1992 foi nomeado pelo presidente Itamar Franco diretor do Instituto Brasileiro de Arte e Cultura, cargo que ocupou até 1995,. Ganhou muitos prêmios literários e foi eleito o Homem de Idéias do ano pelo Jornal do Brasil (2004). Alguns destaques de sua obra poética: Dentro da noite veloz (1975), Na vertigem do dia (1980), Barulhos (1987), Muitas vozes (1999).]

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Encontro

Marcia Szajnbok


Uma flor:
Fixa em seu ponto de mundo
Pétalas abertas
Pólen disponível –
Espera.

Uma borboleta:
Tanto tempo aprisionada num casulo!
Voa
Exibe aos olhares sua beleza colorida –
Procura.

Tão efêmeras, flor e borboleta...
Dois mundos
Feitos um para o outro.

Num repente
O mágico encontro:
A flor com sua borboleta
A borboleta com sua flor eleita...

Como um beijo
Como um toque, um carinho –
Leve, sutil, cuidadoso -
Pura troca de delicadeza.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Poetrix

Marcia Szajnbok


Posologia
Viver seria simples demais
Se não houvesse
Efeitos colaterais



Noturno
Há um eclipse de mim
Quando uma noite sem luar
Te esconde do meu olhar



Romance
Todo amor é eterno
Até a página dois...
Quero saber o que vem depois!


Xadrez
Diante do bispo homicida
A dama salva o rei
Com a própria vida

Imagem: Xadrez, Amanda Szajnbok de Faria

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Paisagem Marinha II


Marcia Szajnbok


Vem mergulhar teus olhos
Nas profundezas do meu olhar...
Vem sem temer meu canto, que não sou sereia...
Neste meu mundo submerso pulsa o coral, respira a areia...
Nestas águas salgadas de mar ou pranto
Navegam afetos, sentimentos, sensações...

Nas manhãs de ondas douradas, o murmúrio de doces canções...
No azul-noite do céu estrelado, o outro azul, das estrelas do mar,
Reflete a maré baixa, as águas calmas...
Praia mansa que aplaca a dor quando a solidão avança...
Na maré alta, o mar revolto, as ondas em turbilhão...
A mais fria das correntes não apaga o calor de uma paixão...

O melhor de mim é náufrago nesse universo abissal...
Estou como em Atlântida, em cidade-fantasma, adormecida...
Vem me dar o beijo que me falta
Prá me trazer de volta à vida...

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Folha

Marcia Szajnbok

O vento conduz a folha
Ou é a folha que se abandona ao vento?

Sopro leve de vento quente
Vai alta a folha, alegremente.

Sopro forte de ar gelado
Despenca a folha no chão molhado.

Quando o vento acalma, sonolento,
Ao ar ou à folha é que falta movimento?

Mas se o vento volta, prazenteiro,
Aos rodopios vai a folha, percorre o mundo inteiro...

Sou folha...
Que venha o vento!
Que não me deixe sem sopro,
No esquecimento.



imagem: Feuilles au Vent, de Rachel Gareau
fonte da imagem:http://www.robertsgallery.net/dynamic/artist.asp?artistid=79

sábado, 16 de agosto de 2008

Mãe da Noiva


Marcia Szajnbok


Menina, Joseneide era esquisita. Sempre afastada das outras crianças, vivia carregando a mesma boneca pra baixo e pra cima. A pobre já quase nem tinha cabelo, e um olho só ainda fechava, o outro tinha paralisado e se enchido de água salgada naquela trágica manhã em que Joseneide teve a péssima idéia de levar a boneca à praia. Menina burra, ouviu da mãe. Menina burra, ouvia sempre de todos. Nunca respondia. Calava a perplexidade e a raiva, calava todas as vozes dentro de si. Pensava lá com seus botões que talvez fosse mesmo burra. Na escola, não ia pra frente. Empacou na tabuada do sete. Até o cinco, foi bem. O seis complicou. Mas o sete foi impossível. A professora chamou a mãe: melhor tentar ensinar outras coisas, quem sabe ela aprende a cozinhar, a bordar, talvez fazer crochê ou costura. Foi tomando tapas na cabeça desde a sala de aula até em casa. Menina burra.
Enquanto as irmãs e as primas iam ficando mais bonitas quando viravam mocinhas, Joseneide continuou mirrada. Cresceu pouco, nada de peitos, as regras não vieram. As outras desabrochavam, Joseneide parecia murchar. Olhava-se no espelho e não gostava do que via. Os olhos escuros inexpressivos, o cabelo sempre teimava em virar pro lado errado, os dentes um pouco desalinhados nunca apareciam, pois não sabia sorrir. Uma cara comum de menina burra.
De todas as coisas que tentaram lhe ensinar, só aprendeu mesmo foi a costura. E, assim mesmo, aprendeu lá do seu jeito. Costurava sem tirar medidas nem desenhar moldes. Pegava o pano, olhava a pessoa, ficava assim parada uns dez minutos. Depois, sem falar e sem sorrir, cortava o tecido e fazia a roupa. O que era surpreendente, é que sempre acertava. Nunca um modelo ficara grande demais ou apertado, nunca o caimento desagradara o freguês. Posso morrer em paz, pelo menos com isso ela não morre de fome, dizia a mãe. E morreu mesmo cedo, mal Joseneide completara os 18 anos.
O tempo foi passando, a família se espalhou, uns para São Paulo, outros para o Rio. Joseneide ficou. Sempre aparecia alguém querendo um vestidinho, uma blusa, e assim ia vivendo. Solitária e quieta, passava tão despercebida que ninguém se deu conta quando começou a engordar um pouco. O rosto ficou redondo, as pernas incharam. Mas foi a barriga que chamou a atenção: ou era barriga d’água, ou Joseneide estava grávida. Mas como grávida, se nunca namorou? Foi a delícia das fofoqueiras da cidade. Hum, essa cara de sonsa não me engana... Isso aí é uma bisca!
A madrugada ia clara e abafada, quando seus gritos cortaram o ar pesado. Os vizinhos foram lá, uns para ajudar, outros para nada. Joseneide ia parir. Não deixou ninguém entrar. Gritou, gritou, e depois de algumas horas aquietou-se. Os ouvidos encostados à porta e à janela, todos queriam ouvir o choro do bebê. Mas o choro não veio. Depois de muita insistência, concordou em receber a parteira e o padre. Cabisbaixos, trouxeram logo para fora o pequeno corpo sem vida da menina recém-nascida. O burburinho ainda durou alguns dias – quem, afinal, seria o pai daquela criança? Joseneide, se antes era quieta, agora emudecera totalmente. Passava os dias com os restos da velha boneca no colo, olhando para o vazio. O povo se esqueceu dela, e tudo voltou a ser como era antes. Exceto para Joseneide.
Depois disso, não abriu mais a porta da casa. Os fregueses batiam, carregados com seus tecidos, ela ignorava. A casa parecia abandonada. O lixo se acumulava e havia insetos por toda parte. O único sinal de vida vinha da cantilena que se podia ouvir todos os dias depois do escurecer: boi, boi, boi, boi-da-cara-preta...
Assim, foram-se os meses, passaram-se os anos. Quando o mau cheiro chegou ao insuportável, o prefeito chamou a vigilância sanitária, que convocou o delegado, que acionou os bombeiros. Bateram na porta, chamaram, mas Joseneide não abria. Decidiram arrombar. Depois de algumas marretadas, a fechadura partiu. Diante da casa aberta, todos estarrecidos: por todos os cantos da pequena sala, havia vestidos de noiva. Cada um de um modelo. Uns com renda, outros bordados com brilhos, pérolas, florzinhas. O chão estava forrado de fiapos de linha e pedaços de tecido branco, aqui e lá uma miçanga perdida. No meio dessa mistura de retalhos, restos de comida e insetos, estava Joseneide: sentada no chão, muito pálida e muito magra, partes da velha boneca no colo. Absorta, rebordava um enorme véu de tule com pedrinhas de cristal furta-cor. Não ofereceu resistência quando o enfermeiro a conduziu para dentro da ambulância. Ninguém mais viu Joseneide. Dizem que foi internada e passa bem.



[Este texto é o resultado de um exercício de desenvolvimento a partir de um microconto, realizado na Oficina Escritores e Teoria Literária. O microconto original é: "Mãe da Noiva", deVolmar Camargo Junior: ”Costurou um vestido de noiva para a filha que não teve. Foi internada e passa bem.”]
imagem: Retirante Grávida, de Cândido Portinari

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Felicidade Clandestina


Clarice Lispector


Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía "As reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberto, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns intantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Pareceu que eu já pressentia. como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.


Clarice Lispector (Tchetchelnik Ucrânia 1925 - Rio de Janeiro RJ 1977) passou a infância em Recife e em 1937 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se formou em direito. Estreou na literatura ainda muito jovem com o romance Perto do Coração Selvagem (1943), que teve calorosa acolhida da crítica e recebeu o Prêmio Graça Aranha. Em 1944, recém-casada com o diplomata Maury Gurgel Valente, viajou pela Europa e Estados Unidos, voltando ao Rio de Janeiro em 1951. Entre suas obras mais importantes estão as reuniões de contos A Legião Estrangeira (1964) e Laços de Família (1972) e os romances A Paixão Segundo G.H. (1964) e A Hora da Estrela (1977). Clarice Lispector começou a colaborar na imprensa em 1942 e, ao longo de toda a vida, nunca se desvinculou totalmente do jornalismo.



quinta-feira, 14 de agosto de 2008

to be and not to be

Marcia Szajnbok

Sou
Mas não sou muito
Não sou sempre
Nem sou bem isso
Sou ao meio
O que penso que seria
E o resto
Que não sou
Não sendo
Me acomete
E desmascara
Ou subverte
O que dentro da luva havia
Sem que a mão lá supusesse
Ter sido recheio um dia.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Momento


Marcia Szajnbok

Sou um corpo
Apenas um corpo solto no universo
Como um grão de estrêla ou pura areia...
Um dia, o vento bate, a água agita
E lá se vai meu frágil corpo, desfeito na poeira...
Meus sonhos, visões, pensamentos
Tudo o que mais quis e nunca disse
O amor que não declarei
Todo o turbilhão de sentimentos
Minhas dores, meus prazeres
Meu sorriso alegre, às vezes triste...
Um dia, nada mais de mim haverá
Nem sequer na memória
De quem ainda crê que vive, e insiste
Na procura de um sentido para o que é puro non-sense
Obviedade ou tautologia:
A vida só é enquanto existe!
imagem: Ampulheta
fonte: galeriaphotomaton.blogspot.com

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Leis da Física

Marcia Szajnbok

Pássaros,
Os pensamentos seguem
Livres
Atravessam paredes
Sobrevoam cidades
- lá de cima tudo fica tão pequeno!
Só o mar é sempre grande
- o mar é mesmo imenso!
E para quem a busca da praia,
A linha do horizonte
Dá sempre um passo atrás
Foge do tato
Teme o toque.

Haverá talvez um ponto
Em alguma coordenada desconhecida
Onde um pássaro-pensamento
Possa alcançar um corpo-horizonte.
Haverá talvez um instante
- ou ainda menos,
um fragmento infinitesimal de tempo -
Quando dois, serão um
E nesse um caberá o mundo
E a eternidade caberá nesse segundo.

Nesse ponto a física subvertida
Se renderá à libertação
De uma neo-dimensão
Amorosa
E desmedida.

domingo, 10 de agosto de 2008

Soneto


Menotti del Picchia


Soneto! Mal de ti falem perversos
que eu te amo e te ergo no ar como uma taça.
Canta dentro de ti a ave da graça
na gaiola dos teus quatorze versos.

Quantos sonhos de amor jazem imersos
em ti que és dor, temor, glória e desgraça?
Foste a expressão sentimental da raça
de um povo que viveu fazendo versos.

Teu lirismo é a nostálgica tristeza
dessa saudade atávica e fagueira
que no fundo da raça nos verteu

a primeira guitarra portuguesa
gemendo numa praia brasileira
naquela noite em que o Brasil nasceu...



***



Paulo Menotti del Picchia, poeta, jornalista, político, romancista, contista, cronista e ensaísta, nasceu em São Paulo, SP, em 20 de março de 1892, e faleceu na mesma cidade em 23 de agosto de 1988.Teve papel de destaque no movimento modernista e foi um dos promotores da Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo (1922). Além das atividades literárias, produziu ainda pinturas e esculturas. Formou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo (1913), ano em que publicou seu livro de estréia, Poemas do Vício e da Virtude. Pertence às Academias Paulistas e Brasileira de Letras, para a qual foi eleito (1943) para ocupar a Cadeira 28. Embora tenha incursionado por vários gêneros literários, é a sua poesia que destaca o sentido nacionalista do Modernismo, do qual foi precursor o seu poema nacional Juca Mulato (1917). A sua origem estética, no entanto, ainda é o Romantismo, que é evidente em sua poesia pela grandiloqüência e floreios verbais.


sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Olhos I


Marcia Szajnbok

Procuro teu olhar
Só encontro os olhos...
Em que silêncio é que te escondes?
Sinto uma tristeza vaga, uma angústia retorcida...
Caminho sempre em frente, sem saber certo prá onde
Segura e imprudente como quem está perdida...
Meu corpo pesa, têm cem quilos meus braços...
O pensamento voa, voa
Até pousar na tua janela...
Pensamento-pombo-correio volta mudo sem resposta...
Secretária eletrônica, telepatia
Tento todas as alternativas de contato
Mas não encontro o que mais busco:
Teu olhar-prozac, olhar-regard, teu olhar de doce companheiro...
Sinto a solidão de uma menina que vê cair da mão
O anel preferido que se perde num bueiro.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Ilusão de Ótica

Marcia Szajnbok



E disse Caim ao Senhor: tão grande é meu pecado que não posso suportá-lo.
(Gênesis 4:13)

Madrugada. Corpo agitado, ensopado, respiração rápida, murmúrios incompreensíveis. Acordou com o próprio grito e procurou, em vão, orientar-se no escuro completo do quarto. Por um instante supôs que estava morto ou cego. Por mais que abrisse os olhos, nada surgia, nenhuma luz, nenhuma imagem. Na cama, lembrou-se, estou na cama. A mão trêmula tateou em busca do interruptor da lâmpada de cabeceira. Um alívio: a luminosidade reafirmava a vida e os sentidos. Sedento, procurou com a própria língua molhar os lábios, mas não havia saliva em sua boca. Sentiu-se seco. Pensou no documentário que ficara assistindo há dois dias sobre a vida nos desertos. Serpentes, escorpiões, restos ressecados de uma vegetação quase extinta. Pensou que deveriam se sentir assim aqueles habitantes das areias: secos. Procurou pelo copo de água que habitualmente trazia consigo para o quarto. Não estava lá. Esquecera-se novamente da água. E agora, tinha de decidir entre a sede, que o impelia a levantar-se, ir até a cozinha e buscar água, e a imobilidade que restara do pesadelo, que o mantinha como que parcialmente acordado apenas, só o cérebro desperto, o resto do corpo ainda fora de seu controle motor. Não conseguiu levantar. Pensou que, se os animais do deserto sobrevivem semanas a custa da pouca água contida nos cactos, poderia esperar mais um pouco até organizar idéias e movimentos no ato voluntário de matar a sede.
O suor esfriara em seu rosto. Sentia-se agora todo frio. Taquicárdico, não conseguia desviar a atenção do ritmo acelerado daquele pulsar que, partindo de seu corpo, refletia nas paredes e ecoava pelo quarto. Riu-se da própria idéia de que talvez os vizinhos, toda a rua, ou todo o bairro pudessem também ouvir as batidas de seu coração. Mesclavam-se a esse ritmo, traços da voz da mãe: fique calmo, querido, foi só um sonho, logo passa... Como ela sabia? Como podia ter certeza? Errara. Passaram os anos, ficou o pesadelo. Verdade que dos nove aos dezoito anos ele era diário. Nove anos seguidos acompanhado pelo mesmo susto. Sim, é possível assustar-se com o mesmo susto... quantas vezes? Nove vezes trezentos e sessenta e cinco... três mil duzentos e oitenta e cinco vezes assustado consecutivamente com o mesmo susto! Desde então, ele foi se tornando menos freqüente. Hoje, é esporádico. O que de certo modo é pior, pois chega sem aviso, vem de surpresa, é uma invasão. Tentou rememorar o dia anterior a procura de fatos que poderiam ter trazido o monstro de volta à superfície do lago. Não encontrou nada. Nunca encontrava. Não estava no dia, não estava no tempo presente, na vida presente. Vinha de outro lugar, diverso da vida, a força de Aqueronte que o mobilizava.
Sou um velho, pensou. Sessenta e três anos. Passou a mão pela cabeça confirmando que o cabelo, há muito embranquecido, agora rareava. Sou um velho, já vivi sete vezes nove anos. A mãe já se fora. Uma pontada no peito sempre acompanhava essa lembrança: a mãe se fora, enganada. O pai, onde estaria? Ainda estaria? Quem sabe... Cresceu, formou-se, casou, teve filhos, hoje tem netos. E ao longo de todo esse tempo, nunca o sonho fiel o deixara.
Sempre o mesmo. Lá estavam os dois, ele e seu irmão, aos nove anos. Gêmeos. Idênticos. Pedro e Paulo, apóstolos. A rocha e a palavra. Brancos, louros, magricelas, as pernas e os braços desproporcionalmente longos para o tronco. Iguaizinhos. Nascerem iguaizinhos já era uma espécie de mistério da natureza. Mas crescerem assim era obra ao mesmo tempo dos genes e da mãe, que os trazia sempre trajados do mesmo modo, com o mesmo corte de cabelo, os mesmos brinquedos, os mesmos livros, os mesmos... E, mistério ainda maior, ela sabia quem era Paulo e quem era Pedro. Como ela sabia? Como podia ter certeza? Por nove anos, nunca errara.
No sonho, Pedro e Paulo brincavam. Riam, jogando bola, imaginando-se num estádio cheio, aplaudidos por imensas torcidas imaginárias. O cenário era uma composição do pátio da escola que freqüentavam e do parque aonde iam aos domingos com o avô, mas o portão alto de ferro trabalhado parecia vir de alguma igreja. Os meninos corriam, livres e inconseqüentes como só meninos sabem correr. Misturavam futebol, pegador e luta livre na criação de um jogo íntimo do qual nenhuma outra criança conseguia participar. Havia entre eles como que um dialeto. Nesses momentos, isolados do resto do mundo, apenas havia Pedro e Paulo, os irmãos-apóstolos idênticos, mergulhados na pura alegria da infância.
Memória ou fantasia? Distinção impossível. Tanto na realidade quanto fora dela, a vida toda muda por um nada, por um sopro, por um escorregão. Assim foi. Um escorregão apenas, uma bobagem, um acidente prosaico que acontece milhares de vezes ao dia em torno do mundo: um menino que brinca, escorrega. Como fora na realidade? Não sabia mais. Vinha há tanto tempo mergulhado no seu pesadelo, que já não conseguia distinguir entre fatos e criações. Em câmera lenta, via seu irmão escorregando, caindo de costas, a cabeça batendo no chão de cimento, um fio de sangue escorrendo pela orelha esquerda, os pequenos olhos abertos perdendo o brilho, tornando-se baços, distantes, as pernas compridas imóveis caindo um pouco para os lados, como se adormecesse. Ele dormiu? Foi esse seu primeiro pensamento. Mas os gritos, o alvoroço que se seguiu, desmentiram sua hipótese. Ele não conseguiria continuar dormindo com todo aquele barulho, tinham ambos um sono tão leve!
A partir daí, a confusão. A voz da mãe, passados cinqüenta e quatro anos, ainda era nítida: Pedro, ela gritou. Pedro. Pedro? Abriu-se o chão, rodopiou o mundo. Como, Pedro? Abraçada ao pequeno corpo inerte, tomada de dor e desespero, ela só conseguia repetir: Pedro, Pedro... Dentro do sobrevivente, instalou-se a eterna dúvida: afinal, Pedro não era ele próprio? Pedro era o irmão morto? Estivera enganado por nove anos? Ou teria a mãe, levada pelo sofrimento, errado pela primeira e fundamental vez? Ela poderia ter errado em tantas outras. Poderia tê-lo repreendido no lugar do irmão, poderia ter deixado de acordar o filho certo na hora de uma prova. Mas não. Tinha de se enganar justamente naquele momento. Ou não?
Nesse ponto, o sonho distanciava-se radicalmente dos fatos. Durante as noites, gritava de volta para a mãe: Pedro sou eu, mãe, sou eu! Mas, ao longo da vida desperta, tal grito jamais fora possível. Era Paulo. Construíra seu lugar no mundo como Paulo, portanto tornara-se Paulo. Ou não? Afinal, fazia assim tanta diferença? Os pais eram os mesmos, os genes eram os mesmos, o corpo era o mesmo. Porque a alma haveria de ser diferente? A mãe decidira-se por manter vivo Paulo. Teria ele o direito de lhe causar uma nova dor, um novo luto, o luto do luto e a morte de outro filho? O que significava, afinal, um nome? Um nome apenas, Paulo, Pedro, Lucas, Mateus, Marcos... meros nomes. Uma seqüência de letras é o que define um ser?
O único problema era a pontada no peito, aquele aperto que sentira ao longo dos anos, a cada vez que a mãe o abraçava, a cada vez que a ferida incurável da mãe se abria e ela chorava, em todos os momentos em que seu olhar encontrava os olhos tristes dela, nunca mais os mesmos desde aquele escorregão estúpido. Fique calma, querida, foi só um sonho, logo passa... Gostaria de ter podido lhe dizer isso, retribuir-lhe o afago noturno que apaziguava o medo. Mas nunca dissera nada, não conseguira. Será que as almas dos mortos se encontram, pensou? E, imediatamente, lembrou-se de que era ateu convicto e materialista absoluto. Porque, então, sentia essa espécie de temor, de receio de criança a ser pega no flagrante de uma molecagem, ao imaginar que se eles, mãe e irmão, estivessem agora juntos, deveriam lhe recriminar a mentira, a usurpação de uma identidade que não era a sua? Ou era?
Num esforço, saiu da cama. Melhor levar para o quarto não apenas um copo, mas a garrafa inteira, decidiu. Noites quentes, pesadelos urgentes. Riu-se pela evocação extemporânea da rima tantas vezes repetida pela avó. Três e meia da manhã, muito tarde para fazer qualquer coisa, muito cedo para levantar-se. O umbigo da noite, esse intervalo entre as três e as cinco. O ponto alto da solidão. Deitou-se novamente, ligou a televisão. Reprisavam o documentário sobre os desertos. Saboreou a água fresca, brincando de provocar inveja na serpente cor de areia que aparecia na tela. Apanhou um livro, tentou ler. Acabou adormecendo assim, com a luz acesa, a TV ligada, os óculos postos, o livro aberto sobre o peito. A falta da mãe e do irmão na alma. A dúvida e a culpa no centro do ser.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Dois Momentos

Marcia Szajnbok


I. MORTE

Por vezes me pergunto
Se a falta que sinto
É mesmo do que já não tenho
Ou da parte de mim
Que um dia supus eterna
E agora não recupero
Por mais que tente
Persiga, imagine, invente

Constato a pura perda
Já por mim viva assim não espero
Foi-se o tempo
Perdeu-se o sonho
Tornou-se o que fui
Silente

Declaro-me a partir deste instante
Condenada
Ao exílio de mim
Eternamente.


II. VIDA

Tempo é trem que segue adiante
Sem paradas, estações, descansos.
Leva corpos, letras e sonhos.
Sobrepõe lembranças,
Imagens quebradas e enganos.

Memória é ponto fugidio que escapa à reta,
Transgressão que ilude a alma.
Rompe a seqüência esperada dos impulsos,
Subverte ponteiros e areias,
Desperta espectros de sentimentos insepultos.

Saudade é ausência que deixa no íntimo
Pegadas de lugares, datas, pessoas.
Momentos de dor ou plenitude
Que alongam o tempo,
Contorcem horas, alteram mapas.
Cede às cores o vazio monocromático
De um presente solitário.

Mas o amor...
O amor não tem tempo.
O amor não tem memória.
O amor faz da saudade, alimento.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Sopa


Marcia Szajnbok

Pôs na panela, a ferver, um bom pedaço de músculo. Com amor, minha filha, a comida quer que se a cozinhe com amor. As palavras da avó, sempre em seus ouvidos. Juntou, com amor, batatas, mandioquinhas e cenouras, uma cebola, uma fatia grossa de paio e outra de toucinho, um bocado de salsa e, claro, um fio de azeite. Só use Português, menina, que os outros não prestam. O cheiro da sopa fervente invadia a casa e a alma. Lembranças boas, saudades da infância, do colo quente e perfumado dos avós. Os pratos esperavamna mesa, preparados: no fundo, uma fatia de pão - uma côdea bem servida – e sobre ela, um pouco de vinho tinto. Por último, a sopa fumegante.
- José, vem jantar, menino! – soava bem chamar o filho pelo mesmo nome do avô.
Uma refeição simples, numa cozinha qualquer, aquecida pelo fogão e pela proximidade. Sentia-se, ali, a representante de gerações e gerações de mulheres, felizes por terem cozido suas sopas e conduzido suas famílias. Enviou um beijinho para o ar. A avó havia de recebê-lo!

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Flash!

Marcia Szajnbok


Na janela urbana, pousa o canto de um pássaro.
Na madrugada o riso rompe o silêncio.
Na tarde de verão, sol e chuva se misturam,
E uma flor vermelha ressuscita
Num vaso esquecido no canto da varanda.
O rosto anônimo sorri tão gratuitamente
Que, em plena multidão, a solidão espanta.

Pequenas surpresas
Momentos inesperados
Respingam a vida com poesia...

Um batimento mais forte
Num coração enregelado:
É amor colorindo a vida de alegria.

domingo, 3 de agosto de 2008

Liberta

fonte da imagem:www.webshots.com

Marcia Szajnbok



Que voem livres todas as palavras!
E que encontrem, definitivamente libertas,
Cada qual o destino que lhes cabe:
O ouvido a que por justiça se destinam.
Que se desamarrem os gestos!
Que os olhos chorem até que o pranto acabe!
E que os passos desancorados
Movimentem o corpo em direção às portas abertas.
Que ecoem a voz e o grito,
As canções e os gemidos,
As gargalhadas, as preces...
E que se esgotem as iras
Vinganças e ódios…
Calem-se todas as feridas...
Até que o silencio venha
Pelas mãos do afago e não da mordaça
E uma quietude doce brote da alma
Finalmente expressa
E livre
E calma.




sábado, 2 de agosto de 2008

Soneto

Marcia Szajnbok
Trago hoje plena a alma do sentimento
Que julgava perdido e extraviado.
Deu-me a vida de presente este passado
Bate-me no coração um novo alento.

Entre rugas e fios brancos se perdia
Do corpo a tão querida juventude.
O relógio do espírito vai, amiúde,
Conduzindo o tempo em doce melodia:

Ora lenta e melancólica, envelhece;
Ora enche o espaço alegre e vibrante.
E o que o espelho do corpo transparece

Não é mais que um retrato desse instante:
Mágoa e solidão que lhe abrem a ferida.
O gesto inesperado recupera a vida.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Anjos


Marcia Szajnbok


Sussurra o anjo:
- Olha! Ouve!
E o olhar pousa obediente e a escuta de uma voz se faz...

A vida passa, estranha e imprevista
Destino e desejo se compõem
Tecem juntos ímpares figuras
Tingem os dias, fabricam o tempo...
O encontro mais improvável
Na mais banal das esquinas do espaço
O instante fortuito que produz revolução
E no mesmo gesto instaura a paz...

Sussurra o anjo:
- Ama!
E o coração bate tão forte que acorda o mundo...

A realidade é conforme os olhos
Corpo e alma, sensação e pensamento
Vagando, qual fantasmas, existentes e etéreos...
Um sorriso, um beijo, o gesto simples
Que faz receber a mão, outra mão...
Numa faísca se produz um ser:
O que era puro ideal, suposição
Faz-se matéria num segundo.

Sussurra o anjo:
- Vem comigo!
E o coração pára, o olhar se apaga, cessa todo o movimento...

No instante último há de aparecer o sentido
O divisor de águas entre o mero passar e o real existir...
Recebe a morte em paz
Aquele que soube viver e dar-se...
Desfaz-se o corpo, viaja a alma
Mantêm-se eternas as sementes
De amor salpicadas no infinito.


Imagem: Asas de Anjo, de Miguel Claro
fonte da imagem: http://artedemiguel.home.sapo.pt/quadro%20asas%20de%20anjo.jpg