sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Narciso e Narciso


Ferreira Gullar

Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira.
Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é
como ele
outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.
E se amam mentindo
no fingimento que é necessidade
e assim
mais verdadeiro que a verdade.

Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.
E fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
- e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora
se odiando.
O espelho
embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam
se ferem
não se largam
que o inferno de Narciso
é ver que o admiravam de mentira.



[Poeta e teatrólogo brasileiro, José Ribamar Ferreira nasceu em 1930 em São Luís, Maranhão. Tornou-se um dos mais importantes poetas brasileiros surgidos após o movimento modernista de 1922. Em 1950 mudou-se para o Rio de Janeiro. Publicou A luta corporal (1954), obra considerada precursora do movimento paulista de poesia concreta. Com Poemas (1958) mostrou-se neoconcretista e liderou o movimento no âmbito carioca, com a publicação do ensaio-manifesto Teoria do não-objeto (1959). A partir de 1061 aderiu à poesia politicamente engajada do movimento Violão de Rua, do Centro Popular de Cultura, o CPC da União Nacional dos Estudantes, a UNE, do qual era presidente quando sobreveio o golpe militar (1964), sendo preso em 1968 após a vigência do AI5. Após um longo período vivendo na clandestinidade, parte para o exílio em 1971. Enquanto morava fora do país, colabora para O Pasquim, Opinião e outros jornais usando o pseudônimo de Frederico Marques. Retornou ao Brasil em 1977. Gravou um disco, Antologia poética de Ferreira Gullar pela Som Livre (1979), mesmo ano em que estreou Um rubi no umbigo, primeira peça que escreveu individualmente. Em 1992 foi nomeado pelo presidente Itamar Franco diretor do Instituto Brasileiro de Arte e Cultura, cargo que ocupou até 1995,. Ganhou muitos prêmios literários e foi eleito o Homem de Idéias do ano pelo Jornal do Brasil (2004). Alguns destaques de sua obra poética: Dentro da noite veloz (1975), Na vertigem do dia (1980), Barulhos (1987), Muitas vozes (1999).]

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