quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Ilusão de Ótica

Marcia Szajnbok



E disse Caim ao Senhor: tão grande é meu pecado que não posso suportá-lo.
(Gênesis 4:13)

Madrugada. Corpo agitado, ensopado, respiração rápida, murmúrios incompreensíveis. Acordou com o próprio grito e procurou, em vão, orientar-se no escuro completo do quarto. Por um instante supôs que estava morto ou cego. Por mais que abrisse os olhos, nada surgia, nenhuma luz, nenhuma imagem. Na cama, lembrou-se, estou na cama. A mão trêmula tateou em busca do interruptor da lâmpada de cabeceira. Um alívio: a luminosidade reafirmava a vida e os sentidos. Sedento, procurou com a própria língua molhar os lábios, mas não havia saliva em sua boca. Sentiu-se seco. Pensou no documentário que ficara assistindo há dois dias sobre a vida nos desertos. Serpentes, escorpiões, restos ressecados de uma vegetação quase extinta. Pensou que deveriam se sentir assim aqueles habitantes das areias: secos. Procurou pelo copo de água que habitualmente trazia consigo para o quarto. Não estava lá. Esquecera-se novamente da água. E agora, tinha de decidir entre a sede, que o impelia a levantar-se, ir até a cozinha e buscar água, e a imobilidade que restara do pesadelo, que o mantinha como que parcialmente acordado apenas, só o cérebro desperto, o resto do corpo ainda fora de seu controle motor. Não conseguiu levantar. Pensou que, se os animais do deserto sobrevivem semanas a custa da pouca água contida nos cactos, poderia esperar mais um pouco até organizar idéias e movimentos no ato voluntário de matar a sede.
O suor esfriara em seu rosto. Sentia-se agora todo frio. Taquicárdico, não conseguia desviar a atenção do ritmo acelerado daquele pulsar que, partindo de seu corpo, refletia nas paredes e ecoava pelo quarto. Riu-se da própria idéia de que talvez os vizinhos, toda a rua, ou todo o bairro pudessem também ouvir as batidas de seu coração. Mesclavam-se a esse ritmo, traços da voz da mãe: fique calmo, querido, foi só um sonho, logo passa... Como ela sabia? Como podia ter certeza? Errara. Passaram os anos, ficou o pesadelo. Verdade que dos nove aos dezoito anos ele era diário. Nove anos seguidos acompanhado pelo mesmo susto. Sim, é possível assustar-se com o mesmo susto... quantas vezes? Nove vezes trezentos e sessenta e cinco... três mil duzentos e oitenta e cinco vezes assustado consecutivamente com o mesmo susto! Desde então, ele foi se tornando menos freqüente. Hoje, é esporádico. O que de certo modo é pior, pois chega sem aviso, vem de surpresa, é uma invasão. Tentou rememorar o dia anterior a procura de fatos que poderiam ter trazido o monstro de volta à superfície do lago. Não encontrou nada. Nunca encontrava. Não estava no dia, não estava no tempo presente, na vida presente. Vinha de outro lugar, diverso da vida, a força de Aqueronte que o mobilizava.
Sou um velho, pensou. Sessenta e três anos. Passou a mão pela cabeça confirmando que o cabelo, há muito embranquecido, agora rareava. Sou um velho, já vivi sete vezes nove anos. A mãe já se fora. Uma pontada no peito sempre acompanhava essa lembrança: a mãe se fora, enganada. O pai, onde estaria? Ainda estaria? Quem sabe... Cresceu, formou-se, casou, teve filhos, hoje tem netos. E ao longo de todo esse tempo, nunca o sonho fiel o deixara.
Sempre o mesmo. Lá estavam os dois, ele e seu irmão, aos nove anos. Gêmeos. Idênticos. Pedro e Paulo, apóstolos. A rocha e a palavra. Brancos, louros, magricelas, as pernas e os braços desproporcionalmente longos para o tronco. Iguaizinhos. Nascerem iguaizinhos já era uma espécie de mistério da natureza. Mas crescerem assim era obra ao mesmo tempo dos genes e da mãe, que os trazia sempre trajados do mesmo modo, com o mesmo corte de cabelo, os mesmos brinquedos, os mesmos livros, os mesmos... E, mistério ainda maior, ela sabia quem era Paulo e quem era Pedro. Como ela sabia? Como podia ter certeza? Por nove anos, nunca errara.
No sonho, Pedro e Paulo brincavam. Riam, jogando bola, imaginando-se num estádio cheio, aplaudidos por imensas torcidas imaginárias. O cenário era uma composição do pátio da escola que freqüentavam e do parque aonde iam aos domingos com o avô, mas o portão alto de ferro trabalhado parecia vir de alguma igreja. Os meninos corriam, livres e inconseqüentes como só meninos sabem correr. Misturavam futebol, pegador e luta livre na criação de um jogo íntimo do qual nenhuma outra criança conseguia participar. Havia entre eles como que um dialeto. Nesses momentos, isolados do resto do mundo, apenas havia Pedro e Paulo, os irmãos-apóstolos idênticos, mergulhados na pura alegria da infância.
Memória ou fantasia? Distinção impossível. Tanto na realidade quanto fora dela, a vida toda muda por um nada, por um sopro, por um escorregão. Assim foi. Um escorregão apenas, uma bobagem, um acidente prosaico que acontece milhares de vezes ao dia em torno do mundo: um menino que brinca, escorrega. Como fora na realidade? Não sabia mais. Vinha há tanto tempo mergulhado no seu pesadelo, que já não conseguia distinguir entre fatos e criações. Em câmera lenta, via seu irmão escorregando, caindo de costas, a cabeça batendo no chão de cimento, um fio de sangue escorrendo pela orelha esquerda, os pequenos olhos abertos perdendo o brilho, tornando-se baços, distantes, as pernas compridas imóveis caindo um pouco para os lados, como se adormecesse. Ele dormiu? Foi esse seu primeiro pensamento. Mas os gritos, o alvoroço que se seguiu, desmentiram sua hipótese. Ele não conseguiria continuar dormindo com todo aquele barulho, tinham ambos um sono tão leve!
A partir daí, a confusão. A voz da mãe, passados cinqüenta e quatro anos, ainda era nítida: Pedro, ela gritou. Pedro. Pedro? Abriu-se o chão, rodopiou o mundo. Como, Pedro? Abraçada ao pequeno corpo inerte, tomada de dor e desespero, ela só conseguia repetir: Pedro, Pedro... Dentro do sobrevivente, instalou-se a eterna dúvida: afinal, Pedro não era ele próprio? Pedro era o irmão morto? Estivera enganado por nove anos? Ou teria a mãe, levada pelo sofrimento, errado pela primeira e fundamental vez? Ela poderia ter errado em tantas outras. Poderia tê-lo repreendido no lugar do irmão, poderia ter deixado de acordar o filho certo na hora de uma prova. Mas não. Tinha de se enganar justamente naquele momento. Ou não?
Nesse ponto, o sonho distanciava-se radicalmente dos fatos. Durante as noites, gritava de volta para a mãe: Pedro sou eu, mãe, sou eu! Mas, ao longo da vida desperta, tal grito jamais fora possível. Era Paulo. Construíra seu lugar no mundo como Paulo, portanto tornara-se Paulo. Ou não? Afinal, fazia assim tanta diferença? Os pais eram os mesmos, os genes eram os mesmos, o corpo era o mesmo. Porque a alma haveria de ser diferente? A mãe decidira-se por manter vivo Paulo. Teria ele o direito de lhe causar uma nova dor, um novo luto, o luto do luto e a morte de outro filho? O que significava, afinal, um nome? Um nome apenas, Paulo, Pedro, Lucas, Mateus, Marcos... meros nomes. Uma seqüência de letras é o que define um ser?
O único problema era a pontada no peito, aquele aperto que sentira ao longo dos anos, a cada vez que a mãe o abraçava, a cada vez que a ferida incurável da mãe se abria e ela chorava, em todos os momentos em que seu olhar encontrava os olhos tristes dela, nunca mais os mesmos desde aquele escorregão estúpido. Fique calma, querida, foi só um sonho, logo passa... Gostaria de ter podido lhe dizer isso, retribuir-lhe o afago noturno que apaziguava o medo. Mas nunca dissera nada, não conseguira. Será que as almas dos mortos se encontram, pensou? E, imediatamente, lembrou-se de que era ateu convicto e materialista absoluto. Porque, então, sentia essa espécie de temor, de receio de criança a ser pega no flagrante de uma molecagem, ao imaginar que se eles, mãe e irmão, estivessem agora juntos, deveriam lhe recriminar a mentira, a usurpação de uma identidade que não era a sua? Ou era?
Num esforço, saiu da cama. Melhor levar para o quarto não apenas um copo, mas a garrafa inteira, decidiu. Noites quentes, pesadelos urgentes. Riu-se pela evocação extemporânea da rima tantas vezes repetida pela avó. Três e meia da manhã, muito tarde para fazer qualquer coisa, muito cedo para levantar-se. O umbigo da noite, esse intervalo entre as três e as cinco. O ponto alto da solidão. Deitou-se novamente, ligou a televisão. Reprisavam o documentário sobre os desertos. Saboreou a água fresca, brincando de provocar inveja na serpente cor de areia que aparecia na tela. Apanhou um livro, tentou ler. Acabou adormecendo assim, com a luz acesa, a TV ligada, os óculos postos, o livro aberto sobre o peito. A falta da mãe e do irmão na alma. A dúvida e a culpa no centro do ser.

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