sábado, 16 de agosto de 2008

Mãe da Noiva


Marcia Szajnbok


Menina, Joseneide era esquisita. Sempre afastada das outras crianças, vivia carregando a mesma boneca pra baixo e pra cima. A pobre já quase nem tinha cabelo, e um olho só ainda fechava, o outro tinha paralisado e se enchido de água salgada naquela trágica manhã em que Joseneide teve a péssima idéia de levar a boneca à praia. Menina burra, ouviu da mãe. Menina burra, ouvia sempre de todos. Nunca respondia. Calava a perplexidade e a raiva, calava todas as vozes dentro de si. Pensava lá com seus botões que talvez fosse mesmo burra. Na escola, não ia pra frente. Empacou na tabuada do sete. Até o cinco, foi bem. O seis complicou. Mas o sete foi impossível. A professora chamou a mãe: melhor tentar ensinar outras coisas, quem sabe ela aprende a cozinhar, a bordar, talvez fazer crochê ou costura. Foi tomando tapas na cabeça desde a sala de aula até em casa. Menina burra.
Enquanto as irmãs e as primas iam ficando mais bonitas quando viravam mocinhas, Joseneide continuou mirrada. Cresceu pouco, nada de peitos, as regras não vieram. As outras desabrochavam, Joseneide parecia murchar. Olhava-se no espelho e não gostava do que via. Os olhos escuros inexpressivos, o cabelo sempre teimava em virar pro lado errado, os dentes um pouco desalinhados nunca apareciam, pois não sabia sorrir. Uma cara comum de menina burra.
De todas as coisas que tentaram lhe ensinar, só aprendeu mesmo foi a costura. E, assim mesmo, aprendeu lá do seu jeito. Costurava sem tirar medidas nem desenhar moldes. Pegava o pano, olhava a pessoa, ficava assim parada uns dez minutos. Depois, sem falar e sem sorrir, cortava o tecido e fazia a roupa. O que era surpreendente, é que sempre acertava. Nunca um modelo ficara grande demais ou apertado, nunca o caimento desagradara o freguês. Posso morrer em paz, pelo menos com isso ela não morre de fome, dizia a mãe. E morreu mesmo cedo, mal Joseneide completara os 18 anos.
O tempo foi passando, a família se espalhou, uns para São Paulo, outros para o Rio. Joseneide ficou. Sempre aparecia alguém querendo um vestidinho, uma blusa, e assim ia vivendo. Solitária e quieta, passava tão despercebida que ninguém se deu conta quando começou a engordar um pouco. O rosto ficou redondo, as pernas incharam. Mas foi a barriga que chamou a atenção: ou era barriga d’água, ou Joseneide estava grávida. Mas como grávida, se nunca namorou? Foi a delícia das fofoqueiras da cidade. Hum, essa cara de sonsa não me engana... Isso aí é uma bisca!
A madrugada ia clara e abafada, quando seus gritos cortaram o ar pesado. Os vizinhos foram lá, uns para ajudar, outros para nada. Joseneide ia parir. Não deixou ninguém entrar. Gritou, gritou, e depois de algumas horas aquietou-se. Os ouvidos encostados à porta e à janela, todos queriam ouvir o choro do bebê. Mas o choro não veio. Depois de muita insistência, concordou em receber a parteira e o padre. Cabisbaixos, trouxeram logo para fora o pequeno corpo sem vida da menina recém-nascida. O burburinho ainda durou alguns dias – quem, afinal, seria o pai daquela criança? Joseneide, se antes era quieta, agora emudecera totalmente. Passava os dias com os restos da velha boneca no colo, olhando para o vazio. O povo se esqueceu dela, e tudo voltou a ser como era antes. Exceto para Joseneide.
Depois disso, não abriu mais a porta da casa. Os fregueses batiam, carregados com seus tecidos, ela ignorava. A casa parecia abandonada. O lixo se acumulava e havia insetos por toda parte. O único sinal de vida vinha da cantilena que se podia ouvir todos os dias depois do escurecer: boi, boi, boi, boi-da-cara-preta...
Assim, foram-se os meses, passaram-se os anos. Quando o mau cheiro chegou ao insuportável, o prefeito chamou a vigilância sanitária, que convocou o delegado, que acionou os bombeiros. Bateram na porta, chamaram, mas Joseneide não abria. Decidiram arrombar. Depois de algumas marretadas, a fechadura partiu. Diante da casa aberta, todos estarrecidos: por todos os cantos da pequena sala, havia vestidos de noiva. Cada um de um modelo. Uns com renda, outros bordados com brilhos, pérolas, florzinhas. O chão estava forrado de fiapos de linha e pedaços de tecido branco, aqui e lá uma miçanga perdida. No meio dessa mistura de retalhos, restos de comida e insetos, estava Joseneide: sentada no chão, muito pálida e muito magra, partes da velha boneca no colo. Absorta, rebordava um enorme véu de tule com pedrinhas de cristal furta-cor. Não ofereceu resistência quando o enfermeiro a conduziu para dentro da ambulância. Ninguém mais viu Joseneide. Dizem que foi internada e passa bem.



[Este texto é o resultado de um exercício de desenvolvimento a partir de um microconto, realizado na Oficina Escritores e Teoria Literária. O microconto original é: "Mãe da Noiva", deVolmar Camargo Junior: ”Costurou um vestido de noiva para a filha que não teve. Foi internada e passa bem.”]
imagem: Retirante Grávida, de Cândido Portinari

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