domingo, 27 de dezembro de 2009

novo dicionário



que se libertem
as neopalavras
que se inventam

antes que fiquem
tortas
artríticas
ou dementes

antes que envelheçam
sem que surja
uma língua
por dizê-las

que venham à luz
antes que acorde
quem em sonhos
tratou de concebê-las

novos sons
sem sentidos
sons nus
de metáforas
despidos

puro audiobrilho
barulho misto de reflexo
na luz branca
estéreoecoando
em etéreas
estrelas

'
fonte da imagem: http://educacao.ig.com.br/imagens/arquivos/cdocuments_and_settingscsassodesktopprof_danielcoluna_imagem3_cortada.jpg

domingo, 20 de dezembro de 2009

matzeivá



o que é que cobre a pedra?
uma vala
umas partes
um pedaço de matéria
que em outra se transforma
e será matéria nova

o que é que a pedra marca?
marca o tempo
e o espaço
faz de conta que é preciso
um lugar para lembrar
do calor de um abraço

o que é que a pedra encerra?
fragmentos de história
não se trancam
sempre escapam
se espalham pela terra
viram planta
dão sementes
vão brotando florescendo

estão em nós
eternamente

`
fonte da imagem:http://ecurioso.blogs.sapo.pt/arquivo/velas.jpg
matzeivá é a pedra tumular que cobre as sepulturas na tradição judaica

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

reflexo

olhou-se de súbito no espelho
imagem limpa, boa figura

tudo estaria perfeito
não fosse pelo soluço
reminiscência de aperto no peito
náusea, angina ou engasgo
qualquer coisa mal parada
posta no corpo
indecifrada
pela alma desnudada

'

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

anatomia

despe-se
que debaixo da roupa há corpo
raspa os pelos
abre os braços
deixa à mostra cada canto
que debaixo da pele há carne viva
disseca as veias
arranca os músculos
chega no fundo
chega no osso
que é o núcleo mineral
a calcária inner concha
da tua essência animal
corta uma costela
vê lá com a luz da lupa
se dentro dela mora
tua semente feminina

onde é que começa a vida?
onde é que ela termina?
`
imagem: circulação placentária em preparação com resina
`

domingo, 29 de novembro de 2009

objetos

silêncio invade
e não se ouve nada
- ou quase nada -
um resquício de som perdido
acode em plena madrugada

lembranças imagens
têm cor
comidas doces molhos
aromas
sabor

buscam-se as pontas
alucinadas
é preciso alinhavar o tato
quer-se a pulso desatar os nós

mas como recuperar a voz?
`

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

mãe

a sombra cresce
ora e diminui
mas não se vai
embora cubra
a janela tão somente
cinza opaco
o diferente
é que logo cedo
bem na hora
pia da madrugada
insone invade
o quarto a aurora
posta toda numa
nesga de luz
fugidia e amarela
...
...

ah
que saudade tenho dela

para nilza
21.06.1936 - 15.11.2009
'

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

epílogo


tanto já quis ir com as ondas

agora queria ser onda
liquefazer-me
misturar-me em solução
minhas águas com meus sais
deixar-me estar assim
a desfazer-me
em água marítima verdeazulada
indo e vindo ao sabor
das marés e intempéries
sem vontades
sem resistência
deixando sobre a areia
apenas a marca amorosa
em branca espuma

menina: olha, mãe! um elefante!
mãe: ...
menina: o que ele está fazendo aí, sozinho, na praia?
mãe: nada, filha...
menina: nem sabia que elefante nadava!
mãe: nada, filha, nada...
`
imagem: Lonely Elephant, Leila Bibizadeh

domingo, 1 de novembro de 2009

Pensando na Vida: sem Eros e sem Civilização

Passam os anos, progridem as tecnologias, e a natureza humana continua a mesma. Surpreendente. Ou não...

Na idade média, elas eram bruxas. Que mulheres! Como ousavam ferir os castos olhares dos padres e dos carolas com seu desejo histericamente transbordante? À fogueira com elas!

Desde então o mundo passou por tanta coisa... Guerras, astronautas, anticoncepcionais, HIV, bebês de laboratório, Hiroshima... E eis que de repente, em pleno século XXI, na super cosmopolita metrópole paulistana, o fenômeno se repete.

Ao invés de fogueira, YouTube. Ao invés de inquisidores, estudantes universitários. Sim, pasmem! Estudantes universitários, o que serve para nos lembrar o quanto o saber racional não dá conta das complexidades do desejo...

Qual foi o pecado da moça? Decidir vestir-se de forma “inadequada” para o ambiente escolar. Muito grave, de fato! Afinal, o que estraga o mundo é mesmo o tipo de roupa que um ser resolve vestir... Todo o resto vai tão bem...

A moça exibiu-se em decotes e transparências? É puta! Foi à faculdade com as pernas de fora? É puta! Ousou provocar os desejos alheios? Pois que seja estuprada! Quase linchada, saiu do prédio escoltada pela polícia e abrigada, ironicamente, num jaleco branco.

Que o desejo subverte, não é novidade. Que o moralismo é uma defesa de quinta categoria para sujeitos que não sabem o lugar certo de colocar o próprio desejo, também não é. Freud tem páginas e páginas acerca dessa questão...

A questão nova aqui é o fato de que essa fogueira tenha ocorrido numa instituição teoricamente voltada ao ensino e ao saber. Absurdo dos absurdos, é que não li nenhuma única manifestação da cúpula dessa “universidade” criticando a barbárie cometida por seus “alunos”.

Melhor assim. Enquanto houver um Judas a se oferecer para ser malhado, ninguém precisa olhar para o espelho à busca das próprias traições. Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo, queime todas as bruxas e nos deixe dormir tranqüilos, na hipocrisia de nossos sonhos eróticos inconfessáveis!


http://www.youtube.com/watch?v=4jfLMrpHM1I

sábado, 31 de outubro de 2009

verbo

há larvas
de palavras
em meio
à lava fulva
que há
para lá
da fala
eflúvia

para tê-las
tira as luvas
suja as mãos
abre o ouvido
deixa-te o corpo
queimar
no não-sentido
`

domingo, 25 de outubro de 2009

verso (im)preciso


como fosse preciso
esculpir o corpo pétreo
riscava a faca e canivete
um arremedo de sorriso
um esgar que podia ser grito
ou máscara crispada de dor

músculos, nervos e vasos
tudo perfeito e imóvel
estátua contida na angústia
de ver a vida lá longe
indo em vagas aos tropeços
empurrada pelos ventos
amordaçada em torpor

como fosse inexato
o dizer do que sonhava
jogava a semente palavra
na terra ferida e na água
salgada de mar e de lágrima
que palavra germina no sal
no ar, no sangue e no nada

corpo todo rabiscado
por dentro pelos sons rimados
desfez-se em ditos não feitos
evaporou em silêncio
transformada em cor e perfume
e tudo que dela restou
foram uns versos imperfeitos
murmurados pelo vento
esquecidos com o tempo
`
imgem: nascer do dia visto de um vôo entre Curitiba e São Paulo, Marcia Szajnbok

domingo, 18 de outubro de 2009

vitória


quem me dera
ter coragem
e essas asas abertas
para lançar-me
incerta
da vitória ou do fracasso
jogar-me assim
nos braços
do amanhã que nem sei

quem me dera
essas pernas
esse tronco
e a transparência
da alma em pedra
a incandescência

quem me dera
ir além

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

primeiros socorros

A MOR
A DOR MECE
A DOR
A MOR DAÇA

A MOR
A MOR TECE
A DOR

A DOR PASSA

`

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

há fim


tudo escuro
cinza e preto
tudo morte
tudo azedo
tudo sofre
tanto medo
tanta dor
tanta doideira
tudo fica
estagnado
lodo e lama
empoçado
fumaça espessa
asfixia
o ar pesado
a agonia

quem liberta?
quem consegue
atravessar
a porta aberta?
ir andando
ir para a frente
ir seguindo
a corrente
até que passe
até que finde
o tempo dado
a estadia

até que reste
só o tato
mesmo sem mãos
sobre o abraço
mesmo sem corpo
fique o calor
em nossas almas
reste amor
'

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

transparências

luz baça de manhã nublada

na quase primavera
as palavras ficam assim
distorcidas de vítreos efeitos
tão translúcidas e brancas
que ninguém pode dizê-las

mas o olhos
seres autônomos e encantados
movem-se como bússolas, imantados,
e captam o brilho oculto das estrelas
'

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

excesso

há tanto!
como pesa o mundo...
coisas demais
muitas imagens
ruídos e luzes demais

demasiadas palavras
recobrindo
todos os tempos
excessivos sentimentos
debulhando
o novo e o antigo

diante de tanta demasia
vou me apequenando
pulga
ponto
partícula sub-atômica
condenada aos prótons
de castigo

rarefeita nessa blablablação
bem queria salvar o mundo
proteger-me e protegê-lo
conter heroicamente a tagarelice hemorrágica
pôr bandagens de silêncio
sobre as bocas abertas e desesperadas
fazer-me útil, amada do mundo

...
mas o mundo, amigo,
não está nem um pouco preocupado comigo...

'

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

novos tempos


tempo de preces ou mero querer
dias doces, de luz e esperança

tempo de deixar a memória correr
nos sons indistintos da primeira infância

algo que toca e fala outra língua
abraços e cheiros de longa distância

a semente ancestral na primavera germina:
que sejamos inscritos no livro da vida!

Shaná Tová!
'

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

(e)terno sentir

distância que não separa
toque sentido em imagem e palavra
um beijo ficou retido entre os lábios e a espera
e o corpo assim desfeito retorna a outro tempo
qual quimera...
brilho nos olhos, puro anseio
sonho de união tão permanente
que liga, atemporal, almas sedentas
de um amor assim tão transcendente
que em lutas e doçuras bem supera
dias, mares e destinos
e que, quando prestes a apagar, já reacende
e em chama única se entrega
fruto de razão e desatino
'

domingo, 13 de setembro de 2009

sílabas



terça-feira, 8 de setembro de 2009

zoom



numa rua da cidade do país do mundo
a casa

no canto da gaveta do armário do quarto
a caixa

no coração cristalino envolto no papel de seda
a concha

espalhados pelas reviravoltas calcárias do antigo caramujo
o ser

pura espera
anseio estático

o momento feito eternidade

que chegue logo o sapo
o príncipe
que venha logo
a mordida ácida ou o beijo

qualquer movimento
que seja
que faça
liberdade

'
fonte da imagem:http://media.photobucket.com/image/molusco%20microscopia%20eletronica/philipe3d/bolamaluca.jpg

terça-feira, 1 de setembro de 2009

cores rindo colorindo

quando o inverno urbano envolve o mundo
em cinzenta monotonia
ponho-me a procurá-la
em qualquer canto ou no fundo
da memória, da bagunça da sala
ou do álbum de fotografia
em alguma célula ou recanto
de uma crista de mitocôndria
misturada ao que recordo de infância
bolinhos, risadas, um dia na praia,
sinto-a surgindo, primeiro nos olhos
depois nos ouvidos
enchendo-me pouco a pouco
a alma de melodia,
cujas cores em aquarela
se diluem na garoa fria
e, de repente, quando menos espero,
dou com ela:

minha alegria
'

domingo, 30 de agosto de 2009

tempos


estático na parede
o relógio
já não batem os pêndulos
há tempos sem som
o cuco morreu

os ponteiros como flechas
apontam para o nada
congelados algarismos
desprovidos de sentido

mas há horas...

as horas,
essas caminham lá fora
no dia nublado
escorrido de garoa

as horas
vão passando
inominadas e secretas

as horas, hoje,
sentem frio
`

terça-feira, 25 de agosto de 2009

natureza morta


na fruteira, bananas
lindas e plácidas
exibidas de seu amadurecimento
amarelo
fazem contraste ibérico
com o vermelho rubro
das maçãs sem pecado

na toalha branca
caprichoso richilieu engana a vista
e já não se sabe onde termina a sombra
e onde começa o bordado

a luz de fim de tarde
põe tons de rosa e alaranjado
na cozinha limpa
esvaziada
àquela hora apenas habitada
pelo cheiro do café
recém coado

(na sala, a mulher chora
mas sua dor e seu soluço
não caberiam no quadro)
'
Imagem: Natureza Morta com Maçãs e Laranjas, Paul Cézanne

sábado, 22 de agosto de 2009

parca vida

é que nunca se sabe quando e como ela virá

é que, se pudéssemos, bem que escolheríamos
o por do sol, as ondas do mar
o abraço infinito do filho, do amor, do amigo

é que nunca se pensa que ela está aí, sempre à porta
surpresa prevista, vago aceno, ameaça constante
como, onde, que motivo, pouco importa
ela virá sem perguntas, fará absoluto o instante

e tudo o que nos é dado pedir, é que venha calma
que seja serena
sono contínuo, talvez com sonhos
sem dor, sem medo, sem despedida

doce Átropos
que traga um sorriso
enquanto nos corta o fio da vida

`

terça-feira, 18 de agosto de 2009

muda



o branco do papel é o dos olhos
cravado em mim como dardos
à espera e à espreita das palavras
que deveriam ter se soltado
da ponta dos dedos ou da mente
ou do coração ou do estômago
palavras com cheiro de corpo
que oferecessem uma rima
uma idéia com sentido ou beleza
a desfazer a brancura
da folha virgem e nua

mas este corpo recluso
recusa-se hoje a falar
fecha-se
e tudo que encontro são rastros
sons amorfos, letras mudas
que não se conectam a nada

minha poesia hoje é calada

'

imagem: Blue Nude, Pablo Picasso

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

(sem) tido

dentro dos livros dentro dos olhos no fundo das bocas no canto dos corpos
tanto procurava e procurava
e no meio das palavras perdidas aqui e ali encontrava uma sobra um pedacinho
um quase nada esquecido e desses restos miudinhos ia compondo um som difuso melodia dissonante tecida em travesseiros perdida entre pranto e cobertores
em quiálteras confusos amontoados acordes uns pianíssimos outros fortes
disparatados stravinkys no chão do quarto e da vida espalhados como tinta
como borrões insones amorfos sem sentido
tempo indo escoando escapa
do cenário caótico à ópera bufa tragicomédia absurda
sem script sem diálogos sem anticlímax ou trilha sonora
atores nus espelhados imperfeitos riem-se uns dos outros-si-mesmos
costas tortas barrigas pelos gorduras flácidas e peitos
retalhos de matéria viva desgastada descomposta decomposta
derretendo-se aos olhares fundindo-se em lava viva
buscando loucamente uma saída
pelos vãos estreitos de silêncio entre as palavras
pelos becos hesitantes e suspiros boquiabertos
entre um a e a outra letra na infinitesimal quietude
escondida entre dois pontos qualquer coisa qualquer data
qualquer ilusão de motivo que justifique comédia ou farsa
que permita ao fim do drama uma coda alinhavada

tudo tanto tanto muito mais e mais e tanto ainda...

tudo isso para

nada

`

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

uns

um é um
e não há dois
hoje é só
não é depois
um mais um
é lado a lado
presente é pó
sobre o passado
um somente
singular mente
outro é sempre
um diferente

'

terça-feira, 4 de agosto de 2009

quero quero


quero o mar
e quero mais
perdida em vagas
avistar
vaga terra
ou profundezas

quero o ar
quero voar
ver lá de cima
verde mundo
em miudezas

quero, quero
e ao meu lado
quero-quero
quer também
amar amado
que incerteza!

'
fonte da imagem: http://www.photoindustrial.com/images/Quero-Quero_bird_flying.jpg

domingo, 2 de agosto de 2009

aula de música

e um e dois e três e quatro
de novo
e um e dois e três
no ritmo
e um e dois e três e quatro
metrônomo
e um e dois e três
stacatto
e volta e sobe e desce
repete
e passa e conta e liga
piano
e um e dois e três e quatro
trinado
e um e dois e três
da capo
`
uma versão vistual deste texto está publicada no Espaço de Escrita http://www.espacodeescrita.web2logy.com/

sexta-feira, 31 de julho de 2009

soneto

quase longe é já tão perto,
que estende a mão e toca
o outro rosto, a pele, a boca
a alma pronta, o peito aberto

sem saber se fica ou corre,
a liberdade do gesto estanca
a vida pára, o coração tranca
o amor estático na etérea torre

entre os corpos, oceanos
almas juntas, no entanto,
fazem muito, fazem tanto

que o tempo retrocede em anos
e o instante do toque recupera
- ressuscitado, o amor espera

`

terça-feira, 28 de julho de 2009

[seria bom saber como arrumar a vida...]

seria bom saber como arrumar a vida
cada coisa em seu lugar
as pessoas sempre bem
a saúde sempre lá

arrumar o armário, a gaveta
jogar fora inúteis papéis
seria bom organizar as lembranças
em caixas coloridas
forradinhas de veludo

arquivar em ordem alfabética
os amores recíprocos
os corpos em forma
as idéias, os sonhos, tudo

ficariam, talvez, melhor postos
de acordo com a cronologia
versos com rimas, sonetos
musica, quem sabe, acordes perfeitos

... mas a realidade vem e cai como chumbo
chuva fria na fogueira dos desejos...

há dor que não tem lugar, não cabe
no meio do caos só a morte aponta
como certeza dura, limite

afronta

é muda
isenta de palavras
impossível choro na alma despida de lágrimas

tudo é quieto e escuro
na respeitosa expectativa:
gente viva


'

sexta-feira, 24 de julho de 2009

amor, ainda

amor palavra
sem casca e sem roupa
de letras puxadas
uma a uma em bem-me-quer
revela em sépia entrelaçados
corpos de homem e mulher
sonhos e segredos coagulados
no pacto sangrante das línguas
que no instante do toque
ouve ainda a voz rouca e distante
da fala louca e muda dos amantes

`

quarta-feira, 22 de julho de 2009

metaescrita




A escrita é um vício. Como fazer a realidade se encaixar na embalagem imperfeita das palavras?
Sempre falta um pouco. Ou sobra.
Mas, como num jogo, o desafio captura. É um videogame pessoal, a escrita.
Quando parece que a temos, a idéia escapa, ou cresce, ou se transforma. E, já outra, nos provoca a começar tudo de novo. Este game nunca é over.
Trocam-se letras, testam-se outras, refazem-se parágrafos e versos. E já não sabemos quem é Aquiles e quem, a tartaruga, nesse esconde-esconde léxico e estilístico que reinventamos a cada dia.
A escrita é um vício porque realidade e palavras são peças de diferentes puzzles. Não encaixam.
Por um breve tempo, iludem.
O sentimento posto no papel parece de verdade. Mas logo já não é. E, então, quer-se mais.
Às vezes, escreve-se com rapidez, na expectativa de que as palavras alcancem a substância.
Mas ela, que afinal é em nós uma criança, ri-se de tamanha arrogância. Corre, foge, enfia-se em algum canto insuspeito da alma e espera. São os dias de silêncio.
Mas, então, num momento qualquer, inesperado, põe as asinhas de fora, sedutora. E, para tentar segurá-la, corremos à caneta, ou ao lápis, ou às teclas. E a brincadeira recomeça.
Enquanto verdade e palavra se divertem dentro de nós, somos percorridos por esse arrepio, esse prazer.
A escrita toca o corpo. Nos faz jovens. É antidepressivo.
A escrita é movimento, é batimento, é pulsar.
A escrita é o jeito que temos de tornar um pouco da vida, infinita.




hoje o PoeticaMente faz aniversário... agradeço a todos que, neste um ano, gastaram uns minutinhos do seu tempo para ver minhas palavras... espero ainda trazer muitas!
um abraço
marcia szajnbok
`

segunda-feira, 20 de julho de 2009

che vuoi?

há tanto nesse mundo por querer...

um pouco mais
ou menos quem sabe
dessa diversa qualidade
que há de seres ao dispor
tanta gente, tanta pele
modelagens tão distintas
raros traços, novas tintas
cores para todos os gostos
mas é preciso estar a postos
para deixar a alma livre
sonhadora, enfim liberta
a encontrar a porta aberta
e seguir em frente, sem medo...

quem é que tem coragem
de se revelar tal segredo?

`

sábado, 18 de julho de 2009

hesitação







quando tudo em mim é silêncio
me confundo:
entre a calma e a desesperança
por que caminho o coração avança?

`

`




`

terça-feira, 14 de julho de 2009

quê???

para meu filho, Ulysses


que tanto quê tem esta língua!
por que tanto porquê
a confundir quem escreve
quem se atreve
até quem lê?

por que separado junta
quando responde
porque sim
ou talvez
ou porque não aguento?

por que regra esquisita
no fim da frase
sem quê nem porquê
o diabo do quê tem que ter acento?

- Por que eu tenho que saber isso, mãe?
Gramática não serve pra nada...
- Menino, sua língua é sua pátria...

língua doce, tem saudade, tem mestiço
mameluco alvar na antropofagia inventada...
língua viva, movediça, ganhou letras, perdeu trema
última flor, que seja inculta
nem por isso menos bela
não há recorte de mundo
mais lindo que o dela!
`

segunda-feira, 13 de julho de 2009

[frio, neblina...]

frio, neblina, garoa cerrada
ar úmido que tudo envolve

a névoa borra a visão do mundo
os olhos vagam
de um lugar
ao outro
procuram
querem outro gosto
outra voz, outro nome

mas o melhor sentido
está ainda adormecido
à espera de algum amarelo
que possa vir
surpreender e tingir
a cinza de morte
que nos encobre

`

sábado, 11 de julho de 2009

avó


chove fino e o som doce da chuva compõe suave melodia

chove tanto, chove, chove...
ouço na chuva a berceuse que embala sonos infantis
sem bicho-papão nem monstro
apenas um beijo, um toque e um rosto
muito perto, muito doce
o olhar azul a cobrir-me e dizer: boa-noite
e a noite se abria em sonhos

chove ainda e a musica sutil da chuva é sempre nova

chovo eu mesma
defectiva do tempo ido
dos carinhos simples e quentes
que guardo em preciosa saudade,
o melhor dos teus presentes
`
imagem: postal antigo mostrando a Ponte Pensil, Santos, SP

quinta-feira, 9 de julho de 2009

trama

há o novelo

de pouco em pouco
os fios desembaraçam
e entretecem
se entrelaçam
cosem novas tecituras

meadas claras
de cores puras

a agulha dança
bordando o ponto
cruzando a linha
que faz o encontro
nas entrelinhas

onde era nada
agora é laço
palavras rimam
tempo e espaço

de abismos fundos,
suprema altura

do imaginado
à semelhança
criou-se vida
literatura

`

segunda-feira, 6 de julho de 2009

ciranda


minha poesia desconcerta
sem métrica
sopra a brasa encoberta
cutuca, coça, assanha
transgride
cria artimanha
a danada
joga na cara
a ruga inusitada
expõe imperfeições
assimétricas

sem rima
como as batatinhas
os sonhos natimortos
se espalharam pelo chão
de casinha
já não brinco
já não durmo
e nem sei o que foi feito
de meu coração
de menina

'
imagem: : Vik Muniz

sábado, 4 de julho de 2009

pós



mutante
o novo se produz
a cada instante

mutável
nada é sólido
todo equilíbrio é instável

na temporalidade videocilpe-instantânea
a vida é faísca momentânea







quarta-feira, 1 de julho de 2009

Pensando na Vida: um médico com P maiúsculo


Dizem que os médicos são os piores pacientes. Rebeldes, indisciplinados, questionadores. Por isso mesmo, ser médico de colega não é pra qualquer um. Quando adoece, um médico quer o melhor. O mais competente, o mais atualizado, o de melhores resultados cirúrgicos, the best entre the best. Escolha sempre difícil, pois os currículos parecem ter cada vez mais páginas. No final das contas, depois de ouvir três ou quatro experts, se decide. E essa decisão acaba por ser tomada a partir de algo que não consta dos memoriais: o contato, a boa e velha relação médico-paciente, que tanto martelamos nos ouvidos dos nossos alunos.

Claro, é sempre melhor estar do outro lado da mesa. Mas, no momento em que uma doença nos deixa frágeis, temerosos, perplexos diante do sem-sentido da vida, é um alívio encontrar no colega médico a quem entregamos nossa saúde um olhar que vai além da competência técnica. Um gesto que diz algo como: vamos lá, estou com você, vai dar tudo certo. Nenhum cirurgião pode saber dos resultados antes de dar alta ao seu paciente. Esse gesto, portanto, não depende do anatomopatológico, não está nos guidelines, não se baseia em evidências. É um laço humano. É um laço amoroso.

Encontrar um médico que nos trate assim, nos dá, a nós, pacientes médicos chatos e rebeldes, além de um tratamento, uma lição. Uma lição sobre o ser médico, sobre o quanto somos transparentes diante daqueles que nos procuram, como é possível decodificar rapidamente, intuitivamente mesmo, esse algo-a-mais que se chama compromisso. Um médico assim, é mais que um doutor. É, de fato, um Professor.

Um grande beijo, Professor Pinotti, com toda minha gratidão.


O Professor José Aristodemo Pinotti faleceu na madrugada desta quarta-feira, 1 de julho, aos 74 anos, no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

terça-feira, 30 de junho de 2009

tudo tanto

todos os dias
um só dia
todos os olhares
num olhar
todos os beijos
cada beijo
todos os desejos
encontrar

todos os amores
um só
todas as palavras
não dizem
toda a distância
se desfaz
tanto tempo
tanto faz

a cada ponto
um reencontro
todavia
tudo finda
todo fim
um recomeço
tanto sonho
que amanheço

'
imagem: Bleu II, Juan Miró
fonte da imagem: http://www.latifm.com/artists/image/miro-joan-bleu-ii.jpg

domingo, 28 de junho de 2009

destempo

tanto passado em meu caminho

constato
que não caminho
e que o tempo
não tem passado:
o pássaro que passa
dá o passo
mas não vai além do ninho
'

segunda-feira, 22 de junho de 2009

âncora


quanto esforço para manter os pés sobre o caminho
e o olhar em frente e no lugar a mente

o esforço é maior que o corpo
peso indizível, esse do presente

falta-me a âncora a prender-me no agora
uma dificuldade aportar aqui

há sempre esse ponto em que
de mim
quero ir-me embora

procuro, ávida, um soluço a me servir de basta
uma sombra a me servir de escora

enquanto isso
a vida passa
e o melhor de mim me ignora
'

quarta-feira, 17 de junho de 2009

[tudo tem seu tempo...]

tudo tem seu tempo:
morangos em maio
pêssegos em dezembro...

bem queria a nau dos dias pilotar...

trazer-te de volta
refazer os passos
concluir o beijo

mas perdi o leme
te perdi no mundo
e me perdi no mar...

paciência, menina, paciência...

neste estranho mundo
tudo tem seu tempo:
morangos em maio
pêssesgos em dezembro

um simples instante é eterno
e a vida toda é um momento

'

quinta-feira, 11 de junho de 2009

esconde-esconde

no mundo, o meu lugar
esteve sempre ao pé de mim
sem que dele jamais me apercebesse

agora, sim, estou segura
de pertencer, a mim e a ele,
tudo quanto não encontrei fora
quer procurasse longe ou perto

bem no fundo
- ou a céu aberto -
estava lá, largado e esquecido,
num recanto qualquer, perdido,
o íntimo estranho que lá dentro mora

ele me diz: certeza!

certeza?, indago
com infantil alívio: obrigada!

mas sua voz fugidia e zombeteira
desse lugar que não existe, me responde
como um eco:
de nada... de nada...

`

terça-feira, 9 de junho de 2009

blues

na imensidão escura da noite
escondo meus sonhos transformados

fica, assim, todo o céu pontilhado
de constelações de palavras ditas
que a mão do tempo torna escritas

por desejo ou mágica caem os versos
sobre a superfície desse mar que invento

e os reflexos do poema sobre as águas
tingem com tons de azul os sentimentos

'

sábado, 6 de junho de 2009

salva-me!


andar seguir andar
é um imperativo
uma força ou uma necessidade?
vem de onde, afinal, essa vontade
esse impulso que desassossega e agita?
além do corpo, além de mim, além do outro
retorce o mundo a minha volta
sussurra versos, alucina, grita
palavras mortas em minhas veias vivas
e em meu sangue as rubras letras vão compondo
temores, sonhos, surpresas nuas e desejos
pulsos cortados, olhos sem brilho
num lampejo escorre a vida no papel manchado
do que, vermelho, seria marca de ferida ou beijo

meu verso vai, solitário e forte
afastar o mal que já não vejo
que, sorrateiro, me conduz à morte

meu verso vai
segue intrépido sempre em frente,
que depois do abismo há de vir o ar
e lá em baixo a imensidão de um mar
em que estarei descolorida e amorfa
mas ainda viva e transparente
`
imagem: Le Double Secret, René Magritte

quinta-feira, 4 de junho de 2009

indriso

ainda agora ontem era a hora
e, por mais que tanto houvesse,
nada via do que acontecia

só depois de ir-se embora
é que, no vazio da realidade,
brotou um pé de saudade

entre espinhos de melancolia

nasceu uma flor de amizade

'

terça-feira, 2 de junho de 2009

(des)espero




não era hoje que vinhas?
postei-me diante do mar
tantas horas diante das ondas
areias brancas cobriam-me os pés
o sal pentrando nos poros
e nada de ti, nada de ti...

quando era mesmo que vinhas?
tantos barcos aportando no cais
tanta nuvem, chuva boa
o vento esqueceu-se das velas
e veio fazer-me um carinho
e nunca teu rosto, nunca...

não me tinhas dito que vinhas?
colorido de sol nascendo
colorido de dia findo
lua branca sobre a água escura
era minha palidez se refletindo...

águas, nuvens, barcos, portos
meu tempo no mundo escoando...

só diante do horizonte
um a um desfiaram-se os dias...
tornei-me toda sal e areia
mas nunca vieste
sempre partias...
'

sábado, 30 de maio de 2009

amigos que escrevem: marcos wagner da cunha

CUORE BUGIARDO

Nel mio cuore ci sono
delle verità
incompatibili fra di sé

Proprio per questo
sono tutte
ugualmente vere

Per amore
io faccio
dei mondi

Per amore
il mio cuore
è bugiardo.
`
CORAÇÃO MENTIROSO
`
Meu coração
tem verdades
incompatíveis entre si

Justo por isso
são todas
igualmente verdadeiras
`
Por amor
eu faço
mundos
`
Por amor
meu coração
mente!


Marcos Wagner da Cunha é também psiquiatra e também devotado à literatura, como leitor e escritor. Este poema foi originalmente escrito em italiano. A versão em portugues é do próprio autor.
`

quinta-feira, 28 de maio de 2009


só um corpo

existo sem saber disso
respiro, procuro, insisto

olho em volta, busco imagens
gravo sons, nomes, paisagens
o cenário pronto, a peça inacabada
`
o palco escuro, a platéia estática, o ator mudo

movo um pé, depois um braço e a nuca
da boca parte uma canção inventada
que enche o ar, contagia o mundo

das palavras libertas vai sobrando
num rastro de brilho e pó

um corpo só


`
imagem: Syzifus, Vik Muniz

segunda-feira, 25 de maio de 2009

mais um soneto

bem preferia um mar de águas calmas
transparência morna a envolver corais
e formar piscinas salgadas e limpas
onde a vida fosse toda calma e paz

mas trago sempre em mim essas ondas
essas vagas enormes e revoltas
a bater nas pedras e quebrar nas praias
e agitar areias com seus vendavais

há sempre tempestade e movimento
essa impossibilidade de conter
o que faz a vontade incessante

volta e meia o coração inquieta
o corpo treme e a alma voa
buscando a eternidade que se faz instante
'

sexta-feira, 22 de maio de 2009

tom




hoje queria escrever leve:

texto feito de espuma branca
com cheiro de jasmim
e ritmo de bossa nova

queria encontrar o tom
achar o acorde perfeito
no meio da dissonância

fazer uns versos azuis
com cheiro bom de maresia
e brisa fresca no rosto

uma poesia tomjobim
que fizesse transbordar a alma
de simplicidade, calor e calma




'


[... é assim: tem-se uma conversa fortuita e a idéia-semente fica plantada, à espera de que germine... Tom Jobim ficou na minha cabeça, rodando entre trechos de músicas, imagens, sensações... quando acordei, os versinhos nasceram... era o broto da palavra... e assim a vida segue...]

'


quinta-feira, 21 de maio de 2009

marasmo

dias de alma silenciosa
sem escrita, sem palavras, sem sonhos
dias mornos
sem sol, sem chuva, sem acontecimentos
dias planos
dias onde a vida arrasta o corpo
e nem sabem de si os movimentos
dias secos
a comida vem sem gosto
e não se tem paciência de tomar vinho
dias bestas
forrados de distâncias
descoloridos de afastamentos
dias em que é melhor ficar sozinho
dias assim
que apenas passam
devagarinho

'

terça-feira, 19 de maio de 2009

indriso


os olhos eram todo o corpo
os olhos postos no retrato
decorando aqueles traços

a alma, tão distante, onde andaria?

mergulhada na água clara
do olhar que não a via
procurando um resto,um rastro

por que longínquos mares esse olhar navegaria?


'
imagem: Blue Sea, Berit Bjørseth

segunda-feira, 18 de maio de 2009

cantiguinha



era uma vez
uma vez

e outra vez ela se fez
e mais outra e outra mais

e tantas vezes em seguida
que levou toda uma vida

para que a vez se desse conta
de que era mesmo tonta

de esperar ser novamente
o que fora eternamente

foi-se embora então, cansada
criou asas: vez passada...



'
imagem: Praça da República (1915), Coleção Folha São Paulo Antiga
fonte da imagem:http://spantiga.folha.com.br/foto_10.html

sexta-feira, 15 de maio de 2009

[quando chegou....]

quando chegou parecia enorme a rua
e, tão pequenos os pés,
cada passo pouco avançava

novidades, cantos e risos
e pouco importava o quanto
parecia longo o caminho
ou o quanto a rua crescia
bem diante de seu sorriso

mas já nem tudo floria
havia becos escuros
soluços, partidas
e sombras por trás dos muros

naquela estranha estrada
quanto mais longa a caminhada
mais queria seguir

quem sabe mesmo andar sempre
não ter nenhuma parada
não ter jamais que partir

numa tarde azul e fria
deu um passo comum, corriqueiro
e nem se deu conta, a princípio,
que depois o chão lhe fugia
que o céu todo escurecera
que estrada ali não havia
nem mais passos
nem pés, nem risos

que só algumas pegadas
deformadas por tempo e atrito
eram as plácidas testemunhas
de seu percurso finito
`

imagem: claroescuro, uma brincadeira a partir de uma foto tirada na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre

quarta-feira, 13 de maio de 2009

assepsia




o sol pela janela

a flor dentro do vaso
o gato estático na tela

grades e muros ao redor
a máscara atrás do espirro
sempre a luva antes do toque

porque não se pode estar perto demais...

entre o contato e a ameaça
o limite frágil esfumaça
e afinal nunca se sabe

se o que mais se quer
é bem ou devasta

e a vida afasta


'

imagem: Three Spheres II, M. C. Escher

segunda-feira, 11 de maio de 2009

as sombras são

era escuro e não sabia
onde a estrada
onde o abismo
e nem mesmo se havia
um caminho para andar

tão escuro
tudo quieto
tudo imóvel
paralítico
mas a pulso
prosseguia
apesar do susto
apesar do medo
passo a passo
devagar

tecia a história
fazia o enredo
e da descrença de que podia
constatou, com alegria,
no horizonte a claridade

entre o terror e a surpresa
descobriu à luz do dia
que, por destino ou por sorte,
depois de toda aquela morte
pulsava um corpo:
algo vivia

`

sábado, 9 de maio de 2009

[retalhos de memória...]


retalhos de memória
esfiapados, frouxos
parcamente alinhavados
num pedaço de lembrança...

partes de uma história
tão antiga, tão distante
esfacelado, foi-se embora
o que restara de infância...

pedaços de parede
porta de vidro na varanda
paisagem feita de azulejo...

apego a um encontro não tido
sem toques, sem vozes
sem a força ameaçadora do desejo...

o resíduo de um amor amarelado
que lá ficou, tão bem guardado,
na esperança de não acabar
sem sequer ter começado...


`

sexta-feira, 8 de maio de 2009

amigos que escrevem: beatriz moura


ÍNTIMA


Trago a outra
Que sou eu
Presa na face
Rasa do espelho

Sem máscaras
- Mulher na orla -
Escorro dos olhos
Pela fresta da frase

Solta no oco
Fundo de mim,
Sem asas
Mostro-me esta
Íntima e prestes
Prêt-à-porter


Bea participa do nosso Estúdio de Criação Poética. Trocou Sampa pela Baía, mas seu samba tem sempre um quê de paulistânia, de garoa e noite fria, e no meio dos seus gatos passeiam inconscientes... Outros textos estão em http://compulsaodiaria.blogspot.com/
`
Imagem: Mulher ao Espelho, Pablo Picasso
`

quarta-feira, 6 de maio de 2009

pleno


em ondas
vida e morte
maré alta cheia de cor e conchas
num instante baixa, tudo leva
varre a areia
esvazia a terra

o abismo seduz
mas é preciso que se escolha:
a morte morta
ou a vida viva?

basta de quase
de quando
de talvez!

que venha o amor que ama
a canção que alegra
o prazer que goza

que venha o mar vivo
e nos carregue
nos devore
nos envolva

e nos conceda o carinho último
até que tudo se dissolva
`
imagem: fim de tarde em juquehy, marcia szajnbok

segunda-feira, 4 de maio de 2009

indriso

trincas, lascas, rachaduras
tudo o que enfeia
o oposto do cuidado

um resto de ser ficou pelos cantos

tudo o que estraga
que aniquila, devasta
o que é resíduo, rebotalho

um pouco de nada fingido de espanto

'

sábado, 2 de maio de 2009

cat on a hot tin roof


luzes

teus olhos
que brilham


de mar e de estrelas
percorrem-me a pele
me buscam, me despem

fico

um pouco escondida
à espreita, à espera
do gesto, da vinda

do bote
da fera

faminta


*este formato é um blavino, uma criação dos amigos Volmar Camargo Junior e Juliana Blasina que, em noites insones, inventaram um soneto assim constituído - número de estrofes: 7; numero de versos: 13, distribuídos a partir dessa sequência: 1-2-3-1-3-2-1; tamanho dos versos: o objetivo é que o poema comece e termine com uma palavra, e que vá "aumentando" até chegar ao verso-estrofe central. Desse modo, o poema deveria ter o formato de uma pirâmide. O meu, entretanto, saiu com um formato de abismo. Nada que o sono e o inconsciente não expliquem...

imagem: Paul Newman e Elizabeth Taylor em cena de Gata em Teto de Zinco Quente (Cat on Hot Tin Roof, 1958), baseado na peça homônima de Tenessee Williams

sexta-feira, 1 de maio de 2009

[a água me chama...]




a água me chama e quero ir soltar-me deixar-me simplesmente ir com as ondas liberta dos destinos das chegadas das promessas apenas fluindo com as correntes aproveitando cada uma das originais sensações da oscilação de temperatura sobre a pele


a água me chama porque sou eu também mar sou células feitas de água e sal e o contato íntimo com o meu mesmo me pacifica como um reencontro como um regresso à mais primeva origem como à mãe


a água me chama com sua voz melíflua e ritmada e suas canções de maresia criam sereias que atraem marujos esperançosos por braços quentes corpos ardentes amor infinito


quando me deixo ir com a água sou eu a sereia e o marujo


meu corpo é o calor em meio às águas


sou até onde as ondas persistem
`

quarta-feira, 29 de abril de 2009

babel


inter texto
interlúdio
inter língua
inter lúdico

many languages
sprechen
too many Sprachen
zu viele langues
muchas muchas
muchas gracias
bien venida guapa muchacha
que nenhum almoço é de graça
nothing never
noch nie or nada

truques e tricks
fricotes freaks
break your breques
no bric-a-braque
sem chiliques no remix!

por mais que o fluxo
seja belo e fale
resiste o cartaz amarelo:
stop!
arrête!
cale!

sem censura
se censura:
shut up!
ta gueule!

clausura
'
imagem: Entropic Angst, Scott Chitwood

segunda-feira, 27 de abril de 2009

[há os laços..]

há os laços

às vezes frouxos
iludem libertação
mas lá estão
sempre os laços

raízes
que se entrecruzam
penetram
fixam
e confundem
asfixia com abraço

... é que entre liberdade e solidão basta um passo...

'

sábado, 25 de abril de 2009

Pensando na Vida: Será que Susan Boyle leu Virgílio?


Freud era um homem culto, mas pouco afeito a citações. Talvez por isso, chame tanto a atenção o fato de que ele tenha usado uma epígrafe na primeira página da primeira edição de sua Interpretação dos Sonhos, em 1900. A frase, retirada do poema Eneida, de Virgílio, poderia ser livremente traduzida assim: “Se não puder mover as forças do céu, moverei as do inferno”. Com sua inteligência e humor sutil, Freud pôs lenha da fogueira das discussões sobre o funcionamento da mente humana, discussões que, diga-se de passagem, sobreviveram a ele e à mudança de século. Para simplificar, a idéia fundamental que subjaz a tudo o que ele escreveu está metaforizada nessa epígrafe, escolhida para abrir a obra que funda o edifício da psicanálise. O que diz ela? Algo como: há algo no cerne do humano que resiste a quaisquer tentativas de sufocar, prender, represar, domesticar, uniformizar, pasteurizar, adaptar... Há algo que sempre escapa às rédeas. Há algo que pulsa, que movimenta, e que empurra o sujeito vida afora, numa busca sempre desafiadora do bom senso e dos bons costumes.


Nesta semana, o mundo conheceu Susan Boyle. Ela tem 47 anos. Passou todo esse tempo incógnita, perdida dos olhares públicos num vilarejo qualquer da Escócia. Ela é feia, gorda, não parece muito brilhante do ponto de vista intelectual. Ofereceu-se ao pouco caso da platéia, vestida com um modelo saído do baú dos anos 60. Confessou, despudorada, às câmeras deste nosso mundo hiper-sexualizado, que nunca namorou, nunca foi beijada. Susan Boyle é a contramão do fashion. E, no entanto, ela canta. Canta bem, canta forte, afinada. E não há de ter sido por acaso que escolheu uma canção que repete “I’ve dreamed a dream...” para jogar na cara dos jurados estupefatos do Britain's Got Talent.


O que virá a seguir? Provavelmente ela gravará um CD. Na capa, aparecerá repaginada. Aliás, um jornal de grande circulação em São Paulo, já usou essa expressão para ilustrar fotos de Susan mais bem arrumadinha. O multiprocessador de pessoas, que é a dita sociedade de consumo, vai moer a Susan, provavelmente. E não faltará quem teça elogios rasgados à sua “melhora”, ou ao seu “progresso”, ou seja lá que palavra bonita se quiser usar usar para dizer que ela se tornou comum. Uma pena. Não se trata de pessimismo. Esse fenômeno já ocorreu antes, muitas vezes. O rock’n roll, o movimento hippie, os punks, só para citar os exemplos mais recentes, estão aí para ilustrar esse percurso.




Mas o que não se pode perder de vista é o momento. O instante de sua aparição e os efeitos dela. Quando o desejo irrompe e sobrepuja as forças da cultura, há sempre surpresa. Uma espécie de perplexidade misturada com inveja e horror. Quem não gostaria de ter a coragem de Susan Boyle? A platéia aplaudiu seu canto, sim, com certeza. Mas aposto que aplaudiu também sua coragem. Aplaudiu por reconhecer naquela mulher velha, gorda e feia, uma coragem que não tiveram. Por que manter-se fiel a si próprio, ao sonho que se acalenta, o desejo mais íntimo, é talvez a tarefa mais difícil para o homem aculturado. Quem nunca sonhou em gritar algo ao mundo, algo inesperado, subversivo ou imoral? Quem? Susan Boyle somos todos nós, criaturas feitas de carne, osso e desejos. Aproveitemos, então, esses minutos de satisfação... porque eles duram pouco, mas nem por isso valem menos a pena!

`



quinta-feira, 23 de abril de 2009

blocos


quarta-feira, 22 de abril de 2009

ex pulsão

sempre os mesmos temas
se repetem
voltam
retrocedem
disco quebrado
soluço
sízifo sobredeterminado

os mesmos velhos temores
abrem outros labirintos
portas
becos
corredores
e o que parecia muro
portão fechado
ou sem saída
de repente vira mar
água que pulsa
vida

'

segunda-feira, 13 de abril de 2009

quinta-feira, 9 de abril de 2009

poetrix na cabeça

I
ser ou não serotonina:
eis a questão
que desatina


II
delicadamente dissecava
um a um, os neurônios...
e nada de achar os sonhos!
'

terça-feira, 7 de abril de 2009

a coisa


quando ela vem
nada posso
então me rendo

é uma onda
um raio, um choque
me atravessa
ultrapassa-me o corpo
me transcende
me transforma
e mesmo rindo
sou refém

quando ela vem
não sou mais eu
viro veículo
meio, apenas
vou correndo
flecha

o tudo
o sempre
o mais querendo
a vida plena
é a meta

segunda-feira, 6 de abril de 2009

[pus meu olhar no horizonte...]

pus meu olhar no horizonte
a ver se enfim chegavas ...
sol nasceu e sol se pôs
onda veio e maré foi
tanto vento, tanta areia
e nada...
uma gota que caía dos meus olhos
à água do mar se misturou
sal marinho, doce pranto
partiu o tempo
quebrou o encanto
e de tanto esperar
estático
meu amor enregelou...
'

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Crônicas Íntimas II: Carpas




Eram turvas aquelas águas e o cheiro não era bom. Pedras escuras, cheias de limo, davam um contorno sombrio aos tanques. Neles, as carpas sobressaíam. Era um contraste, aqueles bichos vermelhos, alaranjados, cada qual com sua estampa, como se alguém os tivesse pintado a mão. Tudo em volta parecia tão morto, só os peixes eram testemunhas da sobrevivência. Irônico, que a vida estivesse restrita àqueles animais frios de olhares baços.
Havia no parque muito mais sombra do que luminosidade. Como a vida. Aqui e ali, há um clarinho, um sol, um pouco de calor, mas, no correr dos dias normais, dos dias iguais, sem vicissitudes, havia o parque.
A menina lá rodopiando, passava do escuro à luz, num ir e vir, sem se dar conta. O brinquedo era barato: um guarda-chuvinha de papel plissado, colorido, como lanterna chinesa, de crepom. Sinhazinha de outros tempos, dançarina de frevo, trapezista, ela era um pouco de cada gente que, supunha, vivia muito e intensamente. Sonhava.
Mas a melhor parte era sempre ir ver as carpas. Jogava-lhes bolinhas de miolo de pão e não sabia se ficava mais atenta aos peixes ou aos círculos que se espalhavam, concêntricos, pela superfície. Imaginava-se como um círculo daqueles, a se espalhar na água, dissolvida. São ondas, dissera uma vez o pai. Então, há alguém que joga pedras em algum ponto distante do mar? É assim que as ondas chegam à praia? O pai sorria e lhe afagava o cabelo. Riam.
A chuva de verão caiu pesada e quente. Desinformada da natureza das coisas, pôs-se debaixo do aguaceiro com o guarda-chuva de papel. Rapidamente ele perdeu a cor, depois a forma, até que se desfez. Tons de verde, turquesa, rosa e amarelo escorriam-lhe pelo braço, pela roupa clara, pelas pernas. À medida que corria, mais a água da chuva e o choro iam espalhando as cores em seu corpo. Será que as carpas tinham tido também um guarda-chuva de papel crepom? Será...?
Tinha sempre na cabeça uma pergunta, uma questão, um por quê. Cultivava sempre a idéia estranha de ser um bicho de água, nascido em terra seca por engano. Ou então, pensava que vivia no continente errado, ou num tempo que não era o seu. Eram os jeitos que a meninice encontrava para circunscrever a sensação definitiva de não pertencimento. Vivia como as carpas coloridas, contrastantes de seu cenário.
Passou o tempo, acabou-se o parque. Devem ter morrido todos os peixes. Acabou-se a menina. Devem ter morrido todos os sonhos. Sobrou dela, apenas, uma mulher fora do lugar. Uma mulher colorida, em eterno contraste com o cinza do mundo.


fonte da imagem: http://kucharek.com/Picture%20064.jpg

quarta-feira, 1 de abril de 2009

[a insônia é boa...]


a insônia é boa
quando, aberta a janela,
o ar se enche
do aroma adocicado

dama-da-noite
me envolve
em seu carinho perfumado
e, ohos fechados no silêncio pleno,
tornam-se olfato
todos os sentidos

lembranças de cheiros
numa sequência encadeadas
formam sonhos
indormidos


'
imagem: dama-da-noite
fonte da imagem: http://www.usefilm.com/images/2/7/2/8/2728/698492-medium.jpg

terça-feira, 31 de março de 2009

stop!

ia andando
distraída
leve e solta
olhando

ávida
ia sonhando
abria a boca
olhos e ouvidos

absorvida
em cor e canto
nem se deu conta

que num segundo
veio o trem
o raio
o infarto

e todo sonho
morto
desfeito
virou farrapo
sumiu no vento

sexta-feira, 27 de março de 2009

corpor(e)ificado


e se me pusesse aqui agora
diante de ti
nua
a vergonha que nos envolveria
seria minha ou tua?


este corpo sou eu!
trago nele as cicatrizes do tempo
as pegadas da história
a nostalgia dos filhos dentro...


quero-o assim
remendado e imperfeito
um corpo que espelha a alma:
aqui um erro, ali um defeito...

desnudar-me para o mundo!

mostrar, exibir, não esconder
cada ponto que desafia
cada gordura transgressora
cada mancha, cada estria!


apropriar-me dessa almacorpo
fazê-la viver
conceder-lhe até o último momento
a benção
o direito
de ser fonte inesgotável
de prazer,
de arrebatamento...



`


quarta-feira, 25 de março de 2009

[depois do passo, o nada...]


depois do passo, o nada
e não há outra mão
a responder à busca
daquela mão desesperada

delicado fio de seda
sustenta a queda
lenta
do desfeito corpo
no vazio do espaço
morto

num último alento
tenta sorver o ar da vida
mas o pranto cálido desafoga o peito
e em água de mar e lágrima
lava-se a alma da dor incontida

depois do passo, o nada
depois do nada, o grito
mais além só o silêncio
e no fim de tudo
o infinito
'

segunda-feira, 23 de março de 2009

cadeia


estranha força que me mantém
atada a ti e ao tempo
que me restringe o movimento
torna-me a voz enfraquecida...

como o sopro de um vampiro
suga-me a cor e a vida
torna-me voluntariamente cativa
do amor algoz que nunca tive...

o passo quer dar-se
mas os pés prendem
âncoras, ao poço infinito
me lançam
repetidamente...

olhos abertos
não vejo escuro nem claro
e já não sei se tenho as formas
que me deixaste marcadas...

perco o rumo, perco a hora
perco-me toda no mundo...

vinda de um sonho roubado
pelo amanhecer inesperado
sou, apenas,
sem futuro
sem predicativo
mera sobra de um desejo intransitivo...


`
imagem: luz e sombra, por marcia szajnbok

sexta-feira, 20 de março de 2009

Des-Econtro

Apertou firme a moeda na palma da mão.

- Cara, eu vou. Coroa, não vou.

A moeda e a memória agitadas em reviravoltas sincrônicas. Numa seqüência de imagens em apresentação pós-moderna, via-se, via-o, jovens, confusos, apaixonados, ciumentos, beijos, brigas, declarações de amor e de ódio... Quando, finalmente, a moeda pousou na palma da mão, fechou os olhos, respirou fundo, e conferiu: cara.
Pronto, estava decidido, iria ao encontro. Com o coração disparado, deu início ao tormentoso processo de escolher o que vestir, o que calçar, como arranjar o cabelo. No espelho, achou bonito o rosto maduro, a pele cuidada, quase sem rugas. O que destoava eram os olhos. Transbordavam ansiedade, aqueles olhos de menina. Pôs no bolso a moeda-decisão, e saiu:

- Seja o que deus quiser!

***

Chegou cedo, mas fez questão de se demorar o suficiente para atrasar dez minutos. Do outro lado da rua, podia vê-lo sentado numa das mesinhas externas do café. Pensou com seus botões que ele estava mais gordo, mais grisalho e um pouco mais careca do que da última vez em que se haviam visto. Parecia também mais sereno. Onde teria ido parar toda aquela energia que ele esbanjava, tanto ao amar quanto ao agredir? Esvaiu-se no tempo.

Intrigada, se perguntava o que ele havia de querer agora, depois de tudo. Anos e anos de convívio, filhos, risos, netos, dores, o longo e trabalhoso processo de construir e desconstruir um casamento. Depois, nada. Anos de silêncio. E agora, de algum ponto remoto do passado, ele ressurgia, espectral, chamando-a para dizer... o quê?

Lá estava ele com seu jornal, como sempre. Pedira uma Coca-cola. Com gelo e sem limão, certamente. Continua bebendo refrigerantes, constatou. Tentava nomear a estranha sensação que ia lhe invadindo. Parecia vir da terra, subir pelas pernas, um amolecimento, uma ternura nostálgica. Tinha ímpetos de atravessar a rua e lhe acarinhar o rosto, dizer a ele com uma doçura perdida no passado o quanto se importava, o quanto gostaria de vê-lo bem, tratando de si, cuidando da saúde, tomando suco natural ou água. O que ele responderia? “Oh, querida, obrigado”!? Não. Definitivamente não. Seria mais provável um áspero “o que é que você tem com isso?” ou “você sempre acha que sabe o que é melhor para os outros, não é?”, seguido daquele suspiro que ficava entre o desprezo e o tédio, que deflagrava nela uma vontade quase incontrolável de morrer. Ou de matá-lo.

Esse sentimento misturado, esse gostar com laivos amargos de desgostar, era velho conhecido. Quando surgira? Não era capaz de dizer. Não havia um ponto, um trauma. Foi o tempo, o passar dos dias, as pequenas desatenções, os mal-entendidos do cotidiano, as grosserias, a falta de paciência. Não souberam encontrar essa tolerância recíproca que é o amor posto no tempo. Saberiam agora? Evidentemente, poderia sentar a seu lado e tomar sua água, ignorando toda a diferença entre ambos materializada ali naquela escolha prosaica da bebida a ser consumida. Seria um esforço. Valeria à pena?

O velho ressentimento ia subindo pela garganta. Lutara contra ele anos a fio. Tinha a convicção íntima de que esse ressentimento é que lhe fizera adoecer logo após o divórcio. Senti-lo de novo, surpreendentemente forte e vivo dentro do peito, lançou-a numa nuvem cinza de tristeza. O mundo ao redor em pleno verão colorido, e ela esfumaçada, nublada e melancólica como uma manhã de outono. Reviveu, com nitidez, aquela capacidade longamente desenvolvida durante o casamento de despertar, cada um, o que de pior havia no outro. Os anjos se perderam. Mantiveram-se unidos pelos sagrados laços de seus demônios. Culpara-o tantas vezes! Mas agora, vendo-o assim, a uma distância de metros, ele parecia apenas um homem maduro, sério e solitário. Era preciso manter essa distância, sentiu. Em algum ponto da aproximação, o demônio despertaria. Sentia-o já inquieto no fundo da alma. E não gostava disso. Não gostava nem um pouco disso.

Sentiu-se abruptamente envelhecida, doíam-lhe as pernas, as costas. O olhar pousou, por acaso, na mão esquerda e encontrou-a cheia de pintas, as veias aparentes e sem aliança. Viu-se toda naquela mão, em pleno processo de deixar o tempo tecer seu trabalho de tempo, e envolvida por esse limite em que a liberdade e a solidão se tocam e se confundem.

A outra mão encontrou no bolso a moeda. Sem hesitar, jogou-a na caixinha do cego que, sentado na calçada, tocava uma flauta desafinada. Ao invés de atravessar a rua, seguiu em frente, rumo à praia. Chegando à areia, livrou-se dos sapatos. Os passos, de início lentos, foram se transformando num quase correr, em pulos, numa estranha dança solitária à beira do mar. Queria, quase precisava, deixar a vida entrar, pelos pés que tocavam a água, pela pele do rosto, que se oferecia ao vento.
`

quinta-feira, 19 de março de 2009

la première leçon

j´ai parti
je te dis
ça ne vas pas
tu me réponds

je pense
il veut que je reste!

mais ce n’est pas comme ça...

la grammaire, elle est bien plus importante
que moi
pour toi

et tu t’en vas…

'

quarta-feira, 18 de março de 2009

indriso


tanta nuvem cinza entrava pela janela!

sentimento revoltado

dor e raiva
carinho, inveja
tudo um pouco misturado

tingiam mais ainda
a atmosfera da vida
com aquele descolorido cinza...


`

imagem: céu de são paulo, marcia szajnbok

terça-feira, 17 de março de 2009

[houve o tempo de rimar...]

houve o tempo de rimar
amor com flor
depois, um momento
de fazer soar a dor

de castigo,
num silêncio
foi preciso o verso pôr

para que
branco e manco
só sobrasse
- sob as águas,
pois não nada -
a rima pura:

amor com amor,
(que nunca se paga)
- verso com verso
se captura...
'

segunda-feira, 16 de março de 2009

G(h)OST(o)S


nas paredes impregnadas
o som dos gritos
a aspereza das palavras
a sombra dos gestos indelicados

nos cantos, nos vãos, nos batentes
o cheiro acre que da ira se desprende

na desordem das coisas foram se perdendo
rascunhos de afeto
tentativas de carinho
desencontro de desejos

numa caixa mal cuidada
em meio a papéis velhos e inúteis recibos
pedaços de um amor menosprezado
que morreu recém-nascido

'

sexta-feira, 13 de março de 2009

amigos que escrevem: giselle natsu sato

Te espero...Vem!
O mel do cálice
escorre em desafio

Prove o sabor da conquista
desfrute a doçura sem limites
da entrega submissa. Premissa!

Quebre as resistências fugidias
Conduzindo os caminhos
Senhor do básico instinto

Beije a boca sorvendo a alma
Em pequenos goles de prazer
desnude o corpo e segredos

Nunca revelados.
'
Giselle Natsu Sato vive no Rio de Janeiro, que continua lindo...
Outros textos podem ser lidos em http://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/

'